11 abril 2011

Pierre Fatumbi Verger - Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo

 
Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo
(Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega)
Pierre Fatumbi Verger, a quem se deve este minucioso trabalho, viveu durante dezessete anos em
sucessivas viagens, desde 1948, pelas bandas ocidentais da África, em terras iorubás. Tornou-se
babalaô em Kêto, por volta de 1950, e foi por essa época que recebeu de seu mestre Oluwo o nome de
Fatumbi: "Aquele que nasceu de novo (pela graça) de Ifá".
A Editora Corrupio, dando continuidade à publicação no país sobre cultura negra, onde são estudados
os fundamentos históricos e mitológicos, a descrição dos rituais, os laços de profunda afinidade
cultural entre a África (região do Golfo de Benin) e Brasil (Salvador e Recife).
Os escravos trazidos desta parte da África, durante os últimos cento e cinqüenta anos do tráfico de
escravos (1700-1850), eram, quase que exclusivamente, destinados às duas regiões do Brasil acima
mencionadas. As razões econômicas que determinaram esta "preferência" e escolha são mencionadas
em outra obra do autor: "Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Baía de
Todos os Santos".
Orixás também se constitui rm valioso documento sobre as religiões em vias de desaparecimento em
na Bahia.
A tradução feita do original por Maria Aparecida da Nóbrega merece ser destacada, como o trabalho
do editor de fotografia Arnaldo Grebler, que ampliou este conjunto de fotos com uma dedicação
perfeccionista à altura do alto valor e importância da obra de Fatumbi Verger

 


Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo
(Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega)
INTRODUÇÃO
Os textos e ilustrações que se seguem propõem-se a comentar e mostrar certos aspectos do culto aos
Orixás, deuses dos iorubas, em seus lugares de origem, na África (Nigéria, ex-Daomé e Togo) e no
Novo Mundo (Brasil e Antilhas), para onde foram levados, em séculos passados, pelos escravos.
Em obras precedentes, já abordamos este tema, juntamente com o culto dos vodun, deuses dos fon,
nessas mesmas regiões. Naquela época, 1953, nossas pesquisas e publicações foram orientadas no
sentido América – África, pois durante os nossos primeiros sete anos de pesquisas, tínhamos vivido
cinco anos no Brasil e nas Antilhas e passado apenas dois anos na África. Como o tempo à situação se
inverteu. Durante os Vinte e sete anos que decorreram desde a redação de nossas primeiras obras,
passamos quinze anos na África e só oito no Brasil e nas Antilhas em períodos alternados e
interrompidos por quatro anos na Europa. Nossas pesquisas orientaram-se, exclusivamente, para os
cultos dos nagôs (iorubas), aqueles que melhor se conservaram na Bahia, nosso local de residência no
Brasil. Ente novo livro será, pois, orientado no sentido oposto ao seguido anteriormente. Nosso ponto
de partida estará situada na África, de onde partiremos para as Américas seguindo a diáspora dos
iorubas.
Definição do Termo “ioruba”
“O termo” yorùbá “, escreve S. O. Biobaku” aplica-se a um grupo lingüístico de vários milhões de
indivíduos.”Ele acrescenta que”, além da linguagem comum, os yorùbá estão unidos por uma mesma
cultura e tradições de sua origem comum, na cidade de Ifé, mas não parece que tenham jamais
constituído uma única entidade política e também é duvidoso que, antes do século XIX, eles se
chamassem uns aos outros por um mesmo nome.”A.E.Ellis mencionou-o, judiciosamente, no título do
seu livro The yorùbá speaking people (“ Os indivíduos que falam o ioruba “), dando a significação
de língua a uma expressão que teve a tendência a ser posteriormente aplicada a um povo, a uma nação
ou a território.
Antes de se ter conhecimento do termo “iorubá”, os livros dos primeiros viajantes e os mapas antigos,
entre 1656 e 1730, são unânimes em chamar Ulkumy, com algumas variantes, a região que nos
interessa.
Depois de Snelgrave, em 1734, o termo “Ulkumy” desaparece dos mapas e é substituído por Ayo ou
Eyo (para designar Oyó).
Em 1726, Francisco Pereira Mendes, comandante do forte português de Ajuda, já mencionava em
seus relatórios enviados à Bahia os ataques dos ayos Contras o s territórios de Agadjá, rei do Daomé e
chamado “O revoltado”, por haver atacado Allada em 1724, e que iria, posteriormente, conquistar
Uidá, em 1727.
Foi esse porto, chamado atualmente Uidá (Glébué para os daomeanos, Igéléfé para os iorubás, Ajuda
para os portugueses, Judá ou Grégoy para os franceses, Wbydah para os ingleses e Fida para os
holandeses) e habitado pelos Bwéda, que se tornou o principal ponto de “exportação” dos escravos
originários das regiões vizinhas, inimigas do Daomé.
Em 1728, este mesmo comandante assinalava que “três reis do interior, poderosíssimos inimigos do
Daomé, chamados Ayo Brabo, Acambu e Ahcomi (Ulkumy), dando-se as mãos uns aos outros o
cercaram”. Encontramos aqui, lado a lado, Ayo e Ulkumy, o que não simplifica o problema.
Norris foi o primeiro a publicar, em 1773, um mapa indicando Ayoes e Eyoes no local onde seus
predecessores assinalavam Ulkumy e, na obra onde inseriu esse mapa, trata da “nação Eyoe, o flagelo
e o terror de todos os seus vizinhos”. Fala também da “invasão que fizeram ao Daomé, em 1738, e do
tratado celebrado entre as duas nações, em 1743, pelo qual o Daomé deveria pagar imposto aos
Eyoe”.
Em 1764, as relações tornaram-se cordiais e Aláàfin, rwei de Oyá, veio ajudar os daomeanos a se
defenderem dos ashantís, em Atakpamê (atual Togo), a oeste de Abomey.
Mas Oyá mantinha estreitas relações, sobretudo com um reino, que servia de Estado-tampão, entre ele
e o Daomé, na região costeira. Um reino, impropriamente chamado Porto Novo, Cuja capital
chamava-se antigamente majaxé. Seu território estendia-se, ao sul, até o oceano Atlântico. No começo
do século XVII, imigrante vindos de ardres (Alladá), levados por Te Agbanlin, instalaram-se em
Ajaxé e deram o nome de Hogbonu à parte da cidade por eles ocupada. Mais tarde, quando Agadjá, o
revoltado, conquistou Alladá, em 1724, e Uidá, três anos mais tarde, uma grande parte dos habitantes
dessas duas cidades fugiu para o leste. Os primeiros foram juntar-se aos habitantes de Hogbonu, para
formarem um novo Ardres. O mapa de Norris mostra a localização desses dois Ardres. Os outros
foram se estabelecer em Badagri, no limite dos territórios dominados pelo rei de Benim, nas cidades
de Adó e Lagos. Esta última era antigamente chamada Eko (roça) pelos iorubas e Onim ou Aunis
pelos navegadores traficantes de escravos. O nome de Porto Novo foi dado, em 1758, ao local hoje
chamado Sème. Este novo porto Tornará-se, juntamente com Badagri e Lagos, o principal
embarcadouro dos escravos vendidos pelo povo de Oyó. O Novo Ardres era, na realidade, tributário e
protegido por Oyó e chamado Adja Popo por seu povo.
Em 6 de outubro de 1777, Oliver Montaguère, comandante do Forte São Luiz de Grégoy, em Uidá,
escrevia à Companhia das Índias que “os ayaux fornecem escravos em Porto Novo, Badagri, Epé e
aqui (Uidá), mas quase não houve fornecido pelos dabomets”.
Em 1780, dizia ele novamente que “em Hardre, vulgarmente chamado Portenauve, pode-se conseguir
nagôs, os negros preferidos”.
Os vocábulos “anago” ou “Inongo” aparecem assim pela primeira vez na correspondência dos
comandantes dos fortes ingleses, franceses ou portugueses de Uidá, sem substituir, entretanto o Ayo
ou Eyo...
Gourg, sucessor de Olivier Montaguère, no forte de Uidá, escrevia em 17 de novembro de 1788, que
“os daomeanos destruíram completamente um território de nagôs, fato que acarretará
escravo”.Assinalava, novamente, em 28 de fevereiro de 1789, que o “o rei de Ardres enviou uma
mensagem ao rei dos aillots, pedindo proteção contra o rei daomeano, para que este não ousasse
invadir suas terras, nem sua praia, e que, se eles (os daomeanos) se conduzissem com a menor
violência, o rei dos aillots, a quem eles (os moradores de Ardres-Portos Novos) pertencem, iria
combate-los (os daomeanos)”.
Através desse relatório, concluímos que o rei do Daomé não receava atacar os nagôs, embora
pertencendo ao grupo de língua iorubá, mas temia bater-se com os habitantes do Novo Ardres,
embora fossem seus primos, protegidos pelo rei de oyó.
Nossas fontes de informações escritas se esgotaram na África, com o abandono dos três fortes de Uidá
pelos franceses, ingleses e portugueses, entre 1797 e 1815.
“Lucumi” e “nagô” são os nomes pelos quais os iorubás são geralmente conhecidos, respectivamente
em Cuba e no Brasil. A expressão “anago” é, no entanto, conhecida em Cuba: ela figura no título de
um livro publicado por Lydia Cabrera, “Anago”, vocabulário lucumi “ou Iorubá tal qual é falado em
Havana”, de onde se deduz que ali Lucumi seria um nome de nação e anago o de sua língua “.
No Novo Mundo, encontramos os primeiros vestígios da palavra “nagô” em um documento enviado
do Bahia em 1756, antes mesmo que está palavra aparecesse na correspondência da África. É, todavia
provável, como sugere Vivaldo Costa Lima, que “o termo ‘ Nagô’ no Brasil seja inspirado naquele
correntemente empregado no Daomé para designar os iorubás de qualquer origem”.
Um autor da Nigéria emite a estranha hipótese de que nagô seria uma deformação do vocábulo
brasileiro negro e que seriam os brasileiros que teriam introduzido esta palavra na costa da África.
Esta engenhosa interpretação não resiste ao exame de certos documentos, nos quais as duas
expressões, negros e nagôs, figuram ambas, a primeira com um sentido geral, e a segunda com um
sentido restrito.
O Conde da Ponte, governador da Bahia, preocupa-se, em 1807, com a presença de nagôs, tão
numerosos nesta cidade, e com razão, pois eles se revoltarão muitas vezes, entre 1808 e 1835. Neste
mesmo ano de 1807, ele deplorava a chegada à Bahia de uma embaixada do rei de Onim,
qualificando-os, em sua angústia, de negros da pior espécie chamados nagôs. No entanto, este mesmo
rei de Onim (Lagos), juntamente com o imperador de Benim, de quem era vassalo, seriam os
primeiros soberanos estrangeiros a reconhecer a independência do Brasil, em 4 de dezembro de 1824,
enquanto os da Inglaterra, da França e de Portugal só a fariam no Ana seguinte.
Encontramos o termo “inogo” escrito por d’Avezac em um trabalho publicado em 1845, baseado em
informações recolhidas junto a um certo Oxifekuedé, originário dopais Ijebu, de onde foi levado em
1820 com a idade de vinte anos. “Este território inongo, dizia ele, era o de uma grande nação que
pertencia à região de Eyo”.Oxifekuedé não conhecia o termo “yarriba” para o qual d’Avezac, que lera
os livros de Clapperton, havia-lhe chamado à atenção.
O termo “iorubá”, efetivamente, chegou ao conhecimento do mundo ocidental em 1826, através de
um livro do Capitão Clapperton. Foi encontrado em um manuscrito, em línguas árabe, trazido por ele
do Reino de Takroor (atual Sokoto), naquela època dominado pelo Sultão Mohamed Bello, de
Haussa. Diz o referido manuscrito que Yarba é uma província que contém rios, florestas, regiões
arenosas, montanhosas e igualmente grandes quantidade de coisas maravilhosas e extraordinárias.
Encontram-se aves que falam, de cor verde, chamada babaga. O documento dá, em seguida, hábeis e
arriscadas interpretações etimológicas sobre a origem do vocábulo Yarba.
Clapperton e Richard Lander utilizam esta palavra para os povos de Oyó. Escreve o primeiro, em 9 de
dezembro de 1825: “Soubemos que estamos agora no distrito de Eyeo, chamado Yarriba pelos árabes
e pelos povos de Haussa, e que o nome da capital é Katunga”. As páginas seguintes mencionam
muitas vezes Yarriba ou Yourriba como sendo região e Yarribanianos ou Yourribanianos os povos
que ali se estabeleceram. Morto Clapperton, Lander, em seu caminho de volta, escrevia, em 25 de
setembro de 1827: “! Chaganso a Katunga, capital de Yarriba...”, e quando retorna à África pela
segunda vez escreve, em 8 de maio de 1830, que “a descrição de qualquer cidade de Yarriba é válida
para todas as demais”.
O termo “iorubá” parece ter sido atribuído pelos haussa exclusivamente ao povo de Oyó,
Ademakinwa escreve que “a extensão desta palavra é devida à iniciativa de Samuel Aiavi Crowther,
nascido em 1810 em Oxogun, no reino de Oyó. Aprisionado pelos fulani, em 1821, e vendido como
escravo em Lagos, foi libertado por um cruzador britânico da esquadra de repressão ao tráfico de
escravos. Levado a Freetown, em Serra Leoa, em 1822, onde estudou, foi em seguida à Inglaterra e
voltou à África, onde terminou sua carreira como bispo anglicano, Redigiu, em 1852, seu Vocabulário
iorubá, que era sua língua, segundo a definição dos haussa. Já em 1830, o Reverendo John Raban da
Church Mission Society publicara, com o auxílio de Ajayi Crowther, um vocabulário que ele ainda
denominava eyo, mas onde declarava que” Iorubá é a denominação geral de um grande país, com
cinco regiões: Oyó, Egbwa, Ibarupa, Ijebu e Ijexá “.
Eram mais de cinco divisões, porém “havia interesse, por parte dos missionários, em não fracionar as
publicações ( da Bíblia em particular ) destinadas a sustentar seus esforços de evangelização em tantas
designações de uma mesma língua. Pareceu mais acertado reunir o conjunto sob o nome de “iorubá”,
dado pelos haussa, unicamente ao povo de Oyó. A administração colonial britânica também achava
vantajoso adotar este termo como um símbolo de reconciliação das diversas nações, outrora reunidas
sob o comando de Aláàfin yó, todas elas falando o iorubpa, e que se bateram em conflitos
intertribais .
Apesar desse esforço de unificação, algumas vezes subsistiram grandes diferenças dialetais, entre
essas diferentes regiões, assim como um orgulho das origens e tradições acompanhado de certa
desconfiança, ou mesmo de desprezo recíproco, que o termo não conseguiu extinguir completamente,
pois cada um desses grupos prefere ser EGBÁ, Ifé,Ijebu ou Ijexá a ser Iorubá.
J. O. Igué, partindo dos trabalhos de M.A. Obayemi adianta que “a maior parte das sociedades iorubás
era, antes da conquista de Ifé por Odudua na etapa dos míni-Estados, de estrutura política
extremamente mirrada, onde a maior parte das funções regiões religiosas, a agricultura e as atividades
sociais eram limitadas ao mínimo”. Era uma civilização de aldeia e não de cidade. A recuperação dos
míni-Estados pelo grupo Odudua aparece como o primeiro fator de urbanização.
Odudua, após ter integrado, no âmbito dessa centralização, bom número de pequeníssima
aglomeração para fundar a cidade de Ifé, enviou, em seguida, seus descendentes diretos para fazerem
o mesmo em regiões às vezes afastadas. Existem ainda grupos de indivíduos que falam iorubá na
região central do ex-Daomé e do Togo, assim como no nordeste do antigo território diretamente
controlado por Odudua e seus descendentes.

 
Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo
(Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega)
ORIXÁS (ÒRÌ À)
Os orixás na África
O termo “Órí à” nos parecera outrora relativamente simples, da maneira como era definido nas obras
de alguns autores que se copiaram uns aos outros sem grande discernimento, na segunda metade do
século passado e nas primeiras décadas deste. Porém, estudando o assunto com mais profundidade,
constatamos que sua natureza é mais complexa. Léo Frabenius é o primeiro a declarar, em 1910, que
a religião dos iorubás tal como se apresenta atualmente só gradativamente tornou-se homogênea. Sua
uniformidade é o resultado de adaptações e amálgamas progressivos de crenças vindas de várias
direções. Atualmente, setenta anos depois, ainda não há, em todos os pontos do território chamado
Iorubá, um panteão dos orixás bem hierarquizado, único e idêntico. As variações locais demonstram
que certos orixás, que ocupam uma posição dominante em alguns lugares, estão totalmente ausentes
em outros. O culto de Xangô, que ocupa o primeiro lugar em Oyó, é oficialmente inexistente em Ifé,
on de um deus local, Oramfé, está em seu lugar com o poder do travão. Oxum, cujo culto é muito
marcante na região de Ijexá, é totalmente ausente na região de Egbá. Iemanjá, que é soberana na
região de Egbá, não é sequer conhecida da região de Ijexá. A posição de todos estes orixás é
profundamente dependente da história da cidade onde figuram como protetores Xangô era, em vida, o
terceiro rei de Oyó. Oxum, em Oxogbô, fez um pacto com Larô, o fundador da dinastia dos reis
locais, e em conseqüência a água nessa região é sempre abundante. Odudua, fundador da cidade de
Ifé, cujos filhos tornaram-se reis das outras cidades iorubás, conservou um caráter mais histórico e até
mesmo mais político que divino. Veremos mais adiante que as pessoas encarregadas de evocar
Odudua não entram em transe, o que destaca seu caráter temporal.
O lugar ocupado na organização social pelo orixá pode ser muito diferente se trata de uma cidade
onde se ergue um palácio real, àáfin, ocupado por um rei, aládé, tendo direito a usar uma coroa, adé,
com franjas de pérolas, ocultando-lhe a face ou onde existe um palácio, ilê lójá, a casa do senhor do
mercado de uma cidade cujo chefe é um bal `que sé tem direito a uma coroa mais modesta chamada
àkòró. Nesses dois casos, o orixá contribui para reforçar o poder do rei ou do chefe. Esse orixá está
praticamente à sua disposição para garantir e defender a estabilidade e a continuidade da dinastia e a
proteção de seus súditos. Mas, nas aldeias independentes, onde o poder civil permaneceu fraco, na
ausência do Estado (autoritário), o impacto das religiões tradicionais é muito forte na sociedade e são
os chefes ‘fetichista’ que garantem a coesão social.
Alguns orixás constituem o objeto de um culto que abrange quase todo o conjunto dos territórios
iorubás, como, por exemplo, Òrì àálá, também chamado bàtálá, divindade da criação, estende-se até
o vizinho território do Daomé, onde Òrì àálá torna-se Lisa, e cuja mulher Yemowo tornou-se Mawu,
o “ deus supremo” entre os fun, ou então Ògún, deus dos ferreiros e de todos aqueles que trabalham
com o ferro, cuja importância das funções ultrapassa o quadro familiar de origem.
Algumas divindades reivindicam as mesmas atribuições em lugares diferentes àngó, em oyó;
ramfè, em Ifé; Aira, em savé. São todos senhores do travão. Ògún tem competidores, guerreiros e
caçadores em diversos lugares, tais como: Ija em torno de Oyó, Ò óò i em Kêto, Òr em Ifé, assim
como Lógunéde, Ibùalám e Erinlè na região de Ijexá. sanyìn entre os oyó desempenha o mesmo
papel de curandeiro que Elésije em Ifé. Aje aluga em Ifé e Òsúmáré mais a oeste são divindades da
riqueza.
O caso de Nana Buruku ou Brukung merece ser tratado à parte. Esta divindade representa a deusa
suprema nas regiões a oeste dos países iorubás, e mesmo além, onde a influência de Ifé é menor,
embora, paradoxalmente, uma parte dessas populações seja chamada Aná ou Ifè, e isso em lugares
onde o culto de Òbàtálá ou Òrì àálá é totalmente desconhecido.
Diante dessa extrema diversidade e dessas inúmeras variações de coexistência entre os orixás, fica-se
descrente diante de certas concepções demasiado estruturadas.
A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa, originária de um mesmo
antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria, em princípio, um ancestral divizado,
que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza,
como o travão, o vento, as águas dioces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de
exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento
das propriedades das plantas e de sua utilização o poder, à , do ancestral-orixá teria, após a sua
morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um
fenômeno de possessão por ele provocada.
A passagem da vida terrestre à condição de orixá desses seres excepcionais, possuidores de um às
poderoso, produz-se em geral em um momento de paixão, cujas lendas conservaram a lembrança.
Veremos, numa lenda, como àngó tornou-se o objeto dessa mutação quando um dia, exasperado por
ter destruído seu palácio e todos os seus, subiu a uma colina em Igbeti, perto da antiga Oyó, e quis
experimentar a eficácia de um preparado destinado a provocar o raio. Em Outra lenda, àngó tornouse
orixá, ou b ra, em um momento de contrariedade por se sentir abandonado, quando deixou Oyó
para retornar à região de Tapa. Somente sua primeira mulher, Oiá, o acompanha na fuga e, por sua
vez, ela entrou para debaixo da terra depois do desaparecimento de àngó. Sua duas outras mulheres,
Ò un e Òbà, tornaram-se rios, que têm seus nomes, quando fugiram aterrorizadas pela fulgurante
cólera do marido comum. Ògún ter-se-ia tornado orixá quando compreendeu, lamentando
amargamente, que acabava de massacrar, em um momento de cólera irrefletida, os habitantes da
cidade de Ire, fundada por ele e que não mais a reconhecera quando ali voltou, após longa ausência.
Esses antepassados divinizados não morreriam de morte natural, morte que em iorubá vem a ser o
abandono do corpo, ara, pelo sopro, èmí. Possuidores de um à e, poder em estado de energia pura.Era
preciso,para que o culto pudesse ser criado, que, assim como os M gba de àngó de que trataremos
mais adiante, um ou vários membros da família tivesse sido capaz de estabelecer o Odù Òrì à,
definido por O.Epega como sendo “ um vaso enterrado no chão, até mais ou menos três quartos de sua
altura, pelos seus adeptos” . Ele serve de recipiente ao objeto suporte da força, o à do Òrì à. Este
objeto suporte é, segundo Cossard-Binon, “ a base material palpável, estabelecida pelo arixá, que
receberá a oferenda e será impregnada pelo sangue do animal sacrificado. Devidamente sacrificado,
será o traço de união entre os homens e a divindade” . A natureza desses objetos está ligada ao caráter
do deus, quer por ser dele uma emanação como a pedra do raio, èdùn ara, de àngó, ou um seixo do
fundo de um riacho, ta, de Ò un, ya ou yem já, quer seja um símbolo, como as ferramentas de
Ògún ou o arco e a flecha de Òsóòsì.
O orixá é uma força pura, àse imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se
em um deles. Esse ser escolhido pelo orixá, um de seus descendentes, é chamado seu elégùn, aquele
que tem o, privilégio de ser “montado” , gùn, por ele. Torna-se o veículo que permite ao orixá voltar a
terra para saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram.
Os elégùn muitas vezes são chamados iyawóòrì à (iaô), mulher do orixá. Este termo tanto se aplica
aos homens quanto às mulheres e não evoca uma idéia de união ou de posse carnal, mas a de sujeição
e de dependência, como antigamente as mulheres o eram aos homens.
Voltaremos, mais adiante, ao problema da iniciação desses elégùn cujo papel è fundamental nas
cerimônias de adoração ao ancestral divinizado, que, incorporando-se ao elégùn, reencontra, por
alguns instantes, sua antiga personalidade espiritual e material. Será novamente a personagem de
outra com suas qualidades e seus defeitos, seus gostos, sua tendência, seu caráter agradável ou
agressivo.
Voltando assim, momentaneamente, a terra, entre seus descentes, durante as cerimônias de evocação,
os orixás dançam diante deles e com eles, recebem seus cumprimentos, “ ouvem as suas queixas,
aconselham, concedem graças, resolvem as suas desavenças e dão remédios para as suas dores e
consolo para os seus infortúnios. O mundo celeste não está distante, nem superior, e o crente podem
conversar diretamente com os deuses e aproveitar da sua benevolência” .
O tipo de relacionamento é de caráter familiar e informal. Um exemplo de uma cerimônia observada
na África ilustra bem esse fato. Trata-se de uma cerimônia para um vodun daomeano, Sapata,
chamado Ainon, o “ senhor da Terra” , sinônimo de ànpònná entre os iorubás, onde é igualmente de
balúayé, que também significa o “ Senhor da terra” . Esse culto de sapata não se afasta
completamente a esse deus falam uma língua sacra que é o iorubá arcaico dos Aná ou Ifé da região de
Atakpamê. Os futuros iniciados de sapata são chamados Anàgónu, os nagôs, nesse estágio de sua
iniciação.
Foi em dezembro de 1969, nos arredores de Abomey, em uma fazenda chamada Tètèpa, residência do
chefe de uma família relativamente numerosa, estabelecida nesse local há muitas gerações em tempo
normal, a fazenda era habitada principalmente por pessoas idosas, crianças confiadas a suas avós e um
número reduzido de adultos de ambos os sexos, indispensáveis aos trabalhos do campo. Em grande
parte, os membros da família exerciam suas atividades em local distante, para voltarem,
periodicamente, trazendo uma parte de seus ganhos para a comunidade familiar. Mas, no dia em que
passamos por essa fazenda, havia muita gente para assistir e participar de uma cerimônia organizada
para agradecer a Sapata Megban, protetor da família, uma graça que ele concedera nas seguintes
circunstâncias.
Três ou quatro anos antes, houve um acidente ferroviário quando dois trens se engavetaram. Houve
numerosos mortos e feridos. Uma mulher, pertencente à família do dono dessa fazenda, encontrava-se
em um dos vagões. Estava grávida e perto de dar à luz. O medo que ela sentiu no momento do
acidente fez com que a criança nascesse antes da hora. Em seu desespero, ela fez a promessa de
oferecer algo de belo ao Sapata da família se a criança e ela sobrevivessem ao desastre. Saíram ilesas
do acidente, e a criança desenvolveu-se normalmente. Tivemos a sorte de assistir ao pagamento da
promessa.
A jovem mulher oferecia naquele dia “ bela coisa” prometida. Era um belo pano um gorro bordado e
oferendas de animais e alimentos. Homens e mulheres, membros da família, vieram de todas as
regiões do Daomé onde trabalhavam, e até do Togo, da Costa do Marfim e da Nigéria. Sapata-Ainon,
encarnado em seu vodunsi (elégùn), estava majestosamente sentado em um trono, pois era também
chamado J b su, o “Rei das Pérolas” . Todos os membros da família estavam prostrados diante dele e
cantavam seus louvores tradicionais. O Vodunun, encarregado de cuidar do deus, fez um pequeno
discurso para lhe agradecer por ter salvo a vida da mulher e da criança e colocou no colo do vodunsi a
criança de três ou quatro anos de idade. Esta se aconchegou em seus braços como o teria feito nos
braços de seu avô. Inteiramente à vontade e sem nenhum receio, a criança brincava com as franjas da
roupa do deus encarnado. Essa cena nos tocou profundamente e nos pareceu muito representativa do
tipo das relações entre os homens e seu deus. Um deus protetor, cujas graças são reservadas, é
verdade, só ao grupo familiar. Mas estamos longe da imagem dos “ feiticeiros sanguinários” , reinando
pelo terror, que a literatura cristã esforçou-se em apresentar para justificar a ação evangélica dos
missionários.
Orixá, ancestral divinizado, é um bem de família, transmitido pela linhagem paterna. Os chefes das
grandes famílias, os balè, delegam geralmente a responsabilidade do culto ao orixá familiar, a um ou
uma aláà , guardião do poder do deus, que dele cuidam ajudados pelos elégùn, que serão possuídos
pelo orixá em certas circunstâncias.
As mulheres da família participam das cerimônias e podem se tornar elégùn do orixá da família
paterna; mas, se forem casadas, é o orixá da família de seu marido que será o de seus filhos. Elas têm
assim uma posição um pouco marginalizada na família do marido. São consideradas somente como
doadores de filhos, mas não são integradas completamente em seu novo lar. Quando morrem, seu
cadáver volta para a casa paterna, onde são enterradas. Mesmo em sua própria família, não têm
posição estável, compatível à dos homens. Esse ponto é ilustrado pela pergunta feita pelo pai para
saber qual o sexo de seu filho ao nascer: “ É o dono da casa (onílé) ou a estrangeira (àléiò)?” , situando,
desde sua chegada ao mundo, a posição relativa dos homens e das mulheres na família iorubá.
Conservando sua filiação ao culto do orixá familiar, pode acontecer que um indivíduo deva, por certas
razões que lhe são indicadas pela adivinhação, seguir o culto a uma outra divindade, a de sua mãe, por
exemplo, após a sua morte; ou de qualquer outra que lhe seja imposta em decorrência de certas
situações: doenças, dificuldades na procriação de um herdeiro, defesa contra uma ameaça precisa ou
imprecisa. Nesses casos, o indivíduo encontra-se implicado mais diretamente na prática desse culto
pessoal.
Uma das características da religião dos orixás é seu espírito de tolerância e a ausência de todo
proselitismo. Isso é compreensível e justificado pelo caráter restrito de cada um desses cultos aos
membros de certas famílias. Como e por que as pessoas poderiam exigir que um estrangeiro
participasse do culto, não tendo nenhuma ligação com os ancestrais em questão?
Olódùmarè, o deus supremo.
Acima dos orixás reina um deus supremo, Olódùmarè, cuja etimologia é duvidosa. É um deus
distante, inacessível e indiferente às preces e ao destino dos homens. Está fora do alcance da
compreensão humana. Ele criou os orixás para governarem e supervisionarem o mundo. É, pois, a
eles que os homens devem dirigir suas preces e fazer oferendas. Olódùmarè, no entanto, aceita julgar
as desavenças que possam surgir entre os orixás.
Essa definição parece ser uma tentativa de elaboração de um sistema que centraliza o que era diverso
e harmoniza o que era incompatível entre orixás vindos de horizontes muito diferentes, como sugere
Léo Frobenius. Apesar de sua posição de sua posição muito exaltada, Olódùmarè não conseguiu,
entretanto, resolver o conflito surgido entre balúayé e Nana Buruku de um lado e Ògún, do outro. A
esse respeito, falaremos mais adiante.
Admitindo o papel de deus supremo atribuído a Olódùmarè e se pairarmos acima das sutilezas locais,
evitando fazer alusão às incoerências que resultam da pluralidade dos orixás, todos igualmente
poderosos, parece que poderemos elaborar um sistema em que cada orixá torna-se um arquétipo de
atividade, de profissão, de função, complementar uns aos outros, e que representam o conjunto das
forças que regem o mundo. É o que exprime algumas histórias de Ifá, que os babalaôs, como as que
se referem ao que já foi dito acima : “Os orixás e os b r são os intermediários entre Olódùmarè e os
seres humanos e receberam, por delegação, alguns de seus poderes” .
Em um tal sistema, os orixás, mais comumente chamados ìm l pelo Rev. D. Onadele Epega, teriam
sido divididos em dois grupos: “ Duzentos ìmólè da direita, igba ìmòlè, e quatrocentos da esquerda,
Irún ìmólè” . Uma Fórmula de saudação ritual sobre a qual pouco se sabe e que é ainda pronunciada,
no Brasil, pelos descendentes dos iorubás, que vivem, sem outra explicação a não ser que, outrora,
entre os iorubás, o primeiro algarismo significasse um grande número e o segundo, um grandíssimo
número.
Olódùmarè mora no além, Òrun, traduzido geralmente por “ céu” . Mas há ai, sem dúvida alguma,
incompreensão por parte dos pesquisadores, todos formados com a idéia de que Deus mora no céu.
Em outro trabalho, mostramos que, entre 1845 e 1962, dos dezoito autores principais que abordaram o
problema do deus supremo entre os iorubás, treze eram missionários católicos e protestante e só dois
eram antropólogos, sendo os outros três um cônsul, um tenente-coronel e um alto funcionário da
administração colonial, todos de nacionalidade britânica.
Quase todos esses pesquisadores dão lóòrun, dono do céu, como primeiro nome ao deus supremo
dos iorubás e Olódùmarè, como segundo.
Nessa pesquisa da definição do deus supremo, como em muitas outras sobre o assunto, cria-se
geralmente uma situação inoportuna entre o pesquisador e a pessoa interrogada. Esta última pega
rapidamente o sentido do pensamento do primeiro e, benevolamente, dá respostas que se ajustam à
hipótese da pesquisa. Mesmo se o informante não alterar voluntariamente os fatos, tentará ao menos
exprimir-se em termos compreensíveis ao seu interlocutor, resultado daí grande satisfação para este
último e enorme prejuízo para a verdade. Um desses pesquisadores, o Padre Bouche, já reconhecia,
entre4 1866 e 1875, que “ os intérpretes negros preocupam-se menos com a exatidão do que com o
fato de não descontentarem o branco, e não deixam de lisonjeá-lo pelas interpretações que sabem ser
de seu agrado ou pelo menos existentes em suas idéias” .
Três desses pesquisadores, de origem iorubá fazem exceção a essas observações:
Onadele Epega, que em seu livro nunca emprega a palavra “ lódùmarè ao deus supremo e acentua
que “ lóòrun é o nome utilizado pelos cristãos e pelos mulçumanos para seus trabalhos de conversão
dos infiéis” .
O Reverendo Padre Moulero, o primeiro nagô a ser ordenado padre no Daomé, chegou a escrever que
“ as populações neste país só acreditavam nos ídolos e não conheciam a Deus, mas é preciso fazer uma
exceção em favor dos nagôs, que sob influência dos muçulmanos, adquiriram (antes da chegada dos
missionários católicos) um conhecimento de Deus que se aproxima da noção filosófica cristã” .
Para definir Olódùmarè, os “ pais do segredo” , nome dado aos adivinhos, dos quais falarem mais
adiante.
Algumas tradições pretendem que Òrun não esteja situado no céu, mas debaixo da terra. Há,
efetivamente, em Ifé um lugar chamado Òrun ba Adó, onde haveria “ dois poços sem fundo que os
antigos diziam ser o caminho mais curto para o além” .
Este Òrun é o além, o infinito, o longínquo, em oposição ao ayé, o período de vida, o mundo, o aqui,
o concreto.
É no Òrun que habitam os montes, os ará Òrun, que voltam periodicamente ao mundo, ayé, para se
tornarem novamente seres vivos, ará ayé. “ Esses além assemelhar-se a terra, porém triste e lúgubre” .
As almas apressar-se-iam em voltar para a terra, para a mesma família, da qual alguns membros usam
o nome de Babatúndé ou o de Iyátúndé, o que significa “ o pai ou a mãe voltou” . Estamos longe do
céu paradisíaco e macio dos cristãos e muçulmanos.
Os próprios deuses não parecem felizes em seu desterro no Òrun-além, e durante as cerimônias
realizadas em seu louvor apressam-se em volta as terras, encarnando-se nos corpos em transe de seus
descendentes que lhes são consagrados.
A idéia de que Òrunalém está situado embaixo da terra é comprovada durante as oferendas aos orixás,
quando o sangue dos animais sacrificados é derramado no ajúb , um buraco cavado na terra, em
frente ao local consagrado ao deus, e os olhares se voltam para o chão e não para o céu.
Os orixás no Novo Mundo
Tráfico de escravos
A presença dessas religiões africanas no novo mundo é uma conseqüência imprevista do tráfico de
escravos. Escravos estes que foram trazidos para os diferentes países das Américas e das Antilhas,
provenientes de regiões da África escalonadas de maneira descontínua, ao longo da costa ocidental,
entre Senegâmbia e Angola. Provenientes, também, da costa oriental de Moçambique e da ilha de São
Lourenço, nome dado época a Madagascar.
Disso resultou, no Novo Mundo, Uma multidão de cativos que não falava a mesma língua, possuindo
hábitos de vida diferentes e religiões distintas. Em comum, não tinham senão a infelicidade de estar,
todos eles, reduzidos à escravidão, longe das suas terras de origem.
Relações “ privilegiadas” estabeleceram-se entre certos países das Américas e das Antilhas e
determinadas regiões do continente africano. Foge, evidentemente, aos limites do presente trabalho
traçar um quadro geral desse complexo sistema de relações. É suficiente indicar que, no tocante à
Bahia, lugar principal do nosso estudo, esses contatos foram particularmente intensos com Angola e o
Congo, até aproximadamente o final do século XVII, desviando-se, mais tarde, em direção à “ costa do
Leste do Forte São Jorge de Mina” , situada no golfo de Benim, entre o rio Volta e o rio Lagos. Tais
relações limitaram-se, posteriormente, à parte central da referida região, conhecida pela triste
denominação de “Costa dos Escravos” , cujo porto principal era Uidá, do qual falamos anteriormente.
Desde muito cedo, ainda no século XVI, constata-se na Bahia a presença de negros bantu, que
deixaram a sua influência n o vocabulário brasileiro. Em seguida, verifica-se a chegada de numerosos
contingente de africanos, proveniente de regiões habitadas pelos daomeanos (gêges) e pelos iorubás
(nagôs), cujas rituais de adoração aos deuses parecem ter servido de modelo às etnias já instaladas na
Bahia.
Os navios negreiros transportaram através do atlântico, durante mais de trezentos e cinqüenta anos,
não apenas o contingente de cativos destinados aos trabalhos de mineração, dos canaviais, das
plantações de fumo localizados no Novo Mundo, como também a sua personalidade, a sua maneira de
ser e de se comportar, as sua crenças.
As convicções religiosas dos escravos eram, entretanto colocadas a duras provas quando de sua
chagada ao Novo Mundo, onde eram batizados abrigatoriamente "para a salvação de sua alma” e
devia curvar-se ás doutrinas religiosas de seus mestres.
A extraordinária resistência oposta pelas religiões africanas às forças de alienação e de extermínio
com que freqüentemente se defrontavam haveria de surpreender a todos aqueles que tentavam
justificar a cruel instituição do tráfico de escravos com o argumento de que as suas atividades as dos
negreiros “ constituíam o meio mais seguro e mais desejável de conduzir à Igreja as almas dos negros,
o que seria mais recomendável do que os deixar na África, onde se perderiam num paganismo
degradante ou estariam ameaçados pelo perigo da sujeição herética às nações estrangeiras, para onde
seriam, no mínimo, deploravelmente enviados” . Era assim que se exprimiam, em 1698, os “ homens
de negócios da Bahia” quando tentaram, sem êxito, fundar uma companhia que se propunha construir
uma fortaleza em Ajuda, para servir de depósito aos escravos em vias de embarque. Somente vinte e
três anos mais tarde é que tal projeto haveria de se concretizar, graças aos esforços do Capitão-de-
Mar-e-Guerra Joseph de Torres estabelecido na Bahia de todos os Santos.
Com essa preocupação de salvar as almas dos africanos das garras dos heréticos, chega-se ao ponto de
proibir, no final do século XVIII, que “ os estrangeiros protestantes que residem na Bahia comprem e
possuam negros, especialmente os recém-chegados, a fim de evitar que lhes sejam inculcados seus
próprios erros e para que eles não sejam doutrinados senão na verdadeira fé” . Nós países de religião
reformada, as pessoas mantinham os mesmos escrúpulos virtuosos e tentavam preservar esses pagãos
dos perigos do papismo. Quanto aos muçulmanos, a preocupação era a mesma: a de conduzir esses
idólatras infiéis em direção à Arábia, à Pérsia e à Turquia, a Fim de converte-los à verdadeira fé, mas
já agora àquela pregada por Maomé...
Vê-se, assim, com que cuidados os negreiros, professando as mais diversas formas de monoteísmo,
tentavam “ salvar” as almas dos africanos, mergulhados nas “ trevas” da idolatria.
Na Bahia, todos os santos do paraíso foram invocados como protetores dessa “ respeitável” atividade:
protetores dos negreiros, dos seus barcos e das mercadorias transportadas.
Thales de Azevedo chamou a atenção para a predominância, até o século XIX, dos nomes de santos
em embarcações lusitanas, verificando ainda uma indiscutível preferência pelo nome de Nossa
Senhora.
Passando em revista os nomes dos navios relacionados em diversos documentos, observamos que, até
1800 aproximadamente, todos aqueles dedicados ao tráfico de escravos encontravam-se sob a
proteção da Virgem Maria, de Cristo, dos santos e, até mesmo, das almas.
Corvetas, galeras e sumacas May de Deus, May dos Homens, Santo André dos Pobres e Alma-Nossa
Senhora da Ajuda, Santo Antônio e Almas.
Tentamos investigar sob qual denominação Nossa Senhora era mais freqüentemente invocada para
proteger a tarefa de salvação das almas dos escravos. Pó outro lado, procuramos saber quais eram os
santos solicitados com maior insistência, a fim de proteger e levar a bom porto os rolos de tabaco, nas
viagens de ida, em direção à África, e os carregamentos de escravos, nas viagens de volta, com
destino à Bahia.
Partindo de indicações recolhidas nos registros de patentes concedidas para carregar os rolos de
tabaco, destinados ao tráfico de escravos, constatamos que “Nossa Senhora” encontra-se mencionada
1154 vezes, sob 57 invocações diferentes, sendo que as mais populares apresentam-se na seguinte
ordem decrescente: Nossa Senhora da Conceição, 324 vezes; Nossa senhora do Rosário, 105 vezes;
Nossa Senhora do Carmo, 98; Nossa senhora da Ajuda, 87; Nossa Senhora da Piedade, 48; Nossa
Senhora de Nazaré, 39; etc. O Bom Jesus encontra-se citado apenas 180 vezes, sob onze invocações
distintas, sendo que Bom Jesus do Bom Sucesso figura 29 vezes; O Bom Jesus de Bouças, 26; Bom
Jesus do Bonfim, 24; etc. Santos e Santas aparecem 1158 vezes, destacando-se, dentre os mais
prestígios, Santo Antônio, mencionado 695 vezes, e acompanhado das almas, 508; São José, 107;
Sant´Ana, 88; São João batista, 43. Curiosamente, o nome de São Jorge aparece, apenas, uma vez...
São José era merecedor de grande devoção entre os negreiros, alcançando mesmo, por volta de 1757,
a posição de “ protetor particular dos homens de negócios que se dedicavam ao tráfico de negros na
Costa da Mina” . Na capela de Santo Antônio da Barra da cidade da Bahia existia uma imagem do
Glorioso Patriarca, com confraria erigida por esses mesmos comerciantes. Essa imagem foi enviada
por ordem do Sereníssimo Senhor Rey Dom João o segundo, no ano 1481, para o castelo da Mina,
aonde se conservou até o ano de 1637, em que foi tirado o Castelo do poder dos Portugueses, sendo
recolhida ou apreendida dita imagem por um dos potentados gentios daquela terra e conservada no
seu barbado poder, passando-a de Pais para Filhos até o ano de 1751, em que o zelo e devoção de um
Capitão dos navios da mesma Costa a resgataram do poder daquela gentilidade, trazendo-a para a dita
Cidade da Bahia no ano de 1752, sem macula alguma do tempo ou ofensa dos mesmos bárbaros
gentios, e com todo o devido culto foi colocada na dita igreja de Santo Antônio, com plausível
festividade e especial proteção para os negócios e comerciantes da mesma costa, a cujo santo se
obrigarão por ser os mensários da companhia e pelos seus particulares bens e despesa própria, a
festejar anualmente, para ter propicio tão grande patrocínio, debaixo do qual crescerão as suas
felicidades, à. Proporção do que lhes auspicia o nome do mesmo santo.
Essa boa consciência dos negreiros era total. Por volta de 1820, diversos comerciantes estabelecidos
em Angola solicitaram ao rei de Portugal, refugiado no Brasil desde 1808, recompensas pelo zelo que
sempre souberam demonstrar nessa espécie de atividade. Alguns dentre eles solicitaram promoção ao
grau honorífico de coronel; outros imploraram a graça de serem condecorados com a Ordem do
Hábito de Cristo... É verdade que cerca de noventa e quatro por cento da receita de Angola provinham
na época, de taxas sobre o tráfico de escravos exportados para o Brasil, principalmente em Recife, em
Pernambuco. Daí, o surgimento, dois anos mais tarde, de um movimento que preconizava a união
dessa colônia africana com o Brasil, já independente a essa altura em vez de permanecer ligada a
Portugal. Apesar de tais tentativas, Angola continuou presa à sua mão poderosa, protegia o navio
brasileiro, permitindo-lhe escapar do perigo e entrar calmamente na enseada.
Sincretismo
Esses mesmos santos, que haviam protegido os interesses dos negreiros e a vida de uma parte dos
negros transportada, tiveram o bom senso de realizar em seguida um exame de consciência, do qual
resultou uma troca de posição: passaram a proteger os escravos, ajudando-os a mistificar os seus
senhores...
Talvez tivessem partilhado os remorsos tardios do Padre Bartolomeu de Lãs Casas, o qual, levado
pela piedosa intenção de preservar as vidas dos índios caraíbas, tentativa, aliás, sem resultados,
desempenhou, no século XVI, o papel de instigador do tráfico transatlântico de negros. Aliás, esse
tráfico África, Europa já existia há bastante tempo. Espanha e Portugal abasteciam-se, ainda que
modestamente, de escravos mouros e negros barbarescos do norte da África, ao longo da costa do
Atlântico. Os países barbarescos do norte da África faziam precisamente mesmo, capturando os
infiéis, neste caso os cristãos, e colocando esses cães a remar nos bancos das suas galeras. Em
contrapartida, os porões da galera estavam repletos de mouros.
Mas, voltando aos santos do paraíso católico, é certo que eles ajudaram os escravos a lograr e a
despistar os seus senhores sobre a natureza das danças que estavam autorizados a realizar, aos
domingos, quando se reagrupavam em batuques por nações de origem. Em 1758, o Conde dos Arcos,
sétimo vice-rei do Brasil, mostrava-se partidário de distrações dessa natureza, não por espírito
filantrópico, mas por julgar útil que os escravos guardassem a lembrança de suas origens e não
esquecessem os sentimentos de aversão recíproca que os levaram a se guerrear em terras da África.
Assim divididos, eles não se arriscariam a um levante em conjunto, como iriam faze-lo cinqüenta
anos mais tarde contra os seus senhores. Estes últimos, vendo os seus escravos dançarem de acordo
com os seus hábitos e cantarem nas suas próprias línguas, julgavam não haver ali senão divertimentos
de negros nostálgicos. Na realidade, não desconfiavam que o que eles cantavam, no decorrer de tais
reuniões, eram preces e louvações a seus orixás, a seus vodun, a seus inkissi. Quando precisam
justificar o sentido dos seus cantos, os escravos declaravam que louvavam, nas suas línguas, os santos
do paraíso. Na Verdade, o que eles pediam era ajuda e proteção aos seus próprios deuses.
Não se pode afirmar que já se tratava de sincretismo entre os deuses da África, por um lado, e os
santos católicos, por outro, pois, no século XVIII, as características das divindades africanas eram
ainda desconhecidas dos senhores e do clero português, enquanto os escravos não podiam também
conhecer os detalhes da vida dos santos.
As primeiras menções às religiões africanas no Brasil são de 160, por ocasião das pesquisas do Santo
Oficio da Inquisição, quando Sebastião Barreto denunciava o costume que tinham os negros, na
Bahia, de matar animais, quando de luto... Para lavar-se no sangue, dizendo que a alma, então,
deixava o corpo para subir ao céu. Por volta da Costa da Mina que fazia bailes às escondidas, com
uma preta mestra e com altar de ídolos, adorando bodes vivos, untando seus corpos com diversos
óleos, sangue de galo e dando a comer bolos de milho depois de diversas bênçãos supersticiosas...
É difícil precisar o momento exato em que esse sincretismo se estabeleceu. Parece ter-se baseado, de
maneira geral, sobre detalhes das estampas religiosas que poderiam lembrar certas características dos
deuses africanos.
Pode parecer estranho, à primeira vista, que Xangô, deus do trovão, violento e viril tenha sido
comparado a São Jerônimo, representado por um ancião calvo e inclinado sobre velhos livros, mas
que é freqüentemente acompanhado, em suas imagens, por um leão docilmente deitado a seus pés. E
como o leão é um dos símbolos de realeza entre os iorubás, são Jerônimo foi comparado a Xangô, o
terceiro soberano dessa nação.
A aproximação entre Obaluaê e São Lázaro é mais evidente, pois o primeiro é o deus da varíola e o
corpo do segundo é representado coberto de feridas e abscessos.
Iemanjá, mãe de numerosos outros orixás, foi sincretizada com Nossa Senhora da Conceição, e Nanã
Buruku, a mais idosa das divindades das águas, foi comparada a Sant´Ana, mãe da Virgem Maria.
Oiá-Iansã, primeira mulher de Xangô, ligada às tempestades e aos relâmpagos, foi identificada com
Santa Bárbara. Segundo a lenda, o pai dessa santa sacrificou-a devido à sua conversão ao
cristianismo, sendo ele próprio, logo em seguida, atingido por um raio e reduzir a cinzas.
A relação entre o Senhor do Bonfim e Oxalá, divindade da criação, é mais dificilmente explicável, a
não ser pelo imenso respeito e amor que ambos inspiram.
Na Bahia, São Jorge é identificado com Oxossi, deus dos caçadores, mas, no Rio de Janeiro, é ligado
a ogum, deus da guerra, o eu é compreensível em relação aos dois orixás, pois São Jorge é
apresentado nas gravuras como um valente cavaleiro, vestido em brilhante armadura, montado sobre
um cavalo ricamente ajaezado em ferro, que bate no chão com as patas e caracola. Armado com uma
lança, São Jorge da Capadócia Mata um dragão enfurecido, caça predileta do deus dos caçadores.
Para maior satisfação do deus dos guerreiros, no Rio de Janeiro, desde os tempos do Império, segundo
Arthur Ramos, São Jorge aparecia nas procissões montado num cavalo branco, com honras de coronel
e recebendo as continências da tropa à sua passagem. Na Bahia, porém, é com Santo Antônio que
Ogum vai ser sincretizado.
Esta aproximação entre Ogum, deus da guerra, e Santo Antônio parece surpreendente, pois o santo é
geralmente representado com uma aparência suave e atraente, trazendo uma flor-de-lis na mão e
carregando, em seus braços, o Menino Jesus. Foi, no entanto, cognominado o martelador dos
heréticos por causa da extrema violência verbal que usava para fustigar os maus pensadores e os
monges sacrílegos. A chave do mistério dessa estranha associação nos é dada nas recordações das
viagens feitas, em 1839, por Daniel P. Kidder: Uma frota o escrevia, comandado por luteranos,
deixou a Franças em 1595, com a intenção de conquistar a Bahia. No caminho, os protestantes
atacaram Argoim, uma ilhota ao largo da costa da África, pertencente aos portugueses, e, depois de se
atirarem ao saque e à destruição, levaram entre outras coisas uma imagem de Santo Antônio. Logo
que prosseguiram viagem, foram atacados por uma forte tempestade, o que causou a perda de vários
navios. Os que escaparam à tormenta foram acometidos pela peste, e durante essa provação, por ódio
ao catolicismo, jogaram a imagem no mar, após terem-na mutilado com golpes de facão. O navio que
transportava chegou a um porto de Sergipe, onde todos os que estavam a bordo foram presos.
Mandados para a Bahia, a primeira coisa que viram na praia foi à imagem que tanto haviam
maltratado... Os frades franciscanos levaram-na, em solene procissão, para o seu convento... Mas os
frades, malsatisfeitos com a aparência velha e feia da imagem, substituíram-na por outra imagem,
mais pomposa e elegante e que foi batizada com o mesmo, tendo, em princípio, herdado sua
virtudes... Santo Antônio foi alistado, como soldado, no Forte da Barra, que tem o seu nome. Como
soldado, recebeu regularmente o soldo até que foi promovido ao posto de capitão, em 16 de julho de
1705, pelo governador Rodrigo da Costa. A Cópia da ordem, dada por aquele governador, está
publicada no livro de Kidder e determina que o procurador do convento está autorizado a receber o
montante deste soldo de capitão. Durante a última guerra mundial, Santo Antônio foi promovido a
major. Os franciscanos da Bahia conservam o uniforme de gala oferecido por uma rica devota. Debret
relata as horárias militares concedidas a santo Antônio nas diferentes províncias do Brasil. Fala,
talvez com exagero, do seu título de marechal dos exércitos do rei João VI e de comendador da Orem
de Cristo na Bahia, de coronel e grã-cruz da Ordem de cristo no Rio de Janeiro, ou mesmo, mais
modestamente, de simples cavalheiro de cristo no Rio Grande.
Ao que parece, certos membros do clero católico julgaram conveniente favorecer esse sincretismo,
como o Padre Boucher havia sugerido, na própria África, ao descrever a estátua da Iangbá, mulher de
Oxalá, nos seguintes termos: esta deusa que muito se parece com a Santa Virgem, pois tanto uma
como a outra salvaram os homens.
Os santos católicos, ao se aproximarem dos deuses africanos, tornavam-se mais compreensíveis e
familiares aos recém-convertidos. É difícil saber se essa tentativa contribuiu efetivamente para
converter os africanos, ou se ela os encorajou na utilização dos santos para dissimular as sua
verdadeiras crenças. É o que Nina Rodrigues indagava em 1890, numa época em que o sincretismo
entre orixás e santos católicos ainda estava em formação e onde a equivalência entre eles era flutuante
e variável de acordo com os terreiros. Existia ainda, na época, a tendência de se identificar Xangô
com Santa Bárbara, como se vê até hoje em Cuba, apesar da diferença de sexo, pois o argumento das
relações com o trovão parecia dominar. Nina Rodrigues escrevia, então: Aqui na Bahia, como em
todas as missões de catequese dos negros africanos, seja ele católico, protestante ou maometano,
longe de o negro converter-se ao catolicismo, protestantismo ou ao islamismo, acontece, ao contrário
influenciá-los com seu fetichismo e adapta-los ao animismo do negro.
Basta, para compreender o fenômeno, assistir aos serviços divinos nos templos protestantes do
Harlem, em Nova York, ou mesmo na África, aos cultos de numerosas seitas mais ou menos
sincréticas, como a dos querubins e Serafim, onde os fiéis são visitados e possuídos, violentamente
algumas vezes, pelo Espírito Santo.
Nos candomblés, as duas religiões permanecem separadas, e Nina Rodrigues constatava que, em fins
do último século, a conversão religiosa não fez mais que justapor as exterioridades muito mal
compreendidas do culto católico às suas crenças e práticas fetichistas que em nada se modificaram.
Concebem os seus santos ou orixás e os santos católicos como de categoria igual, embora
perfeitamente distintos.
Os africanos escravizados se declaravam e aparentavam convertidos ao catolicismo; as práticas
fetichistas puderam manter-se entre eles até hoje quase tão estremes de mescla como na África.
Depois, as viagens constantes para a África com navegação e relações comerciais diretas...
Facilitaram a reimportação de crenças e práticas, porventura um momento esquecido ou adulterado.
Com o passar do tempo, com a participação de descendentes de africanos e de mulatos Ada vez mais
numerosa, educada num igual respeito pelas duas religiões, tornaram-se eles tão sinceramente
católicos quando vão à igreja, como ligados às tradições africanas, quando participam, zelosamente,
das cerimônias de candomblé.
Primeiros terreiros de candomblé
A instituição de confrarias religiosas, sob a égide da Igreja Católica, separava as etnias africanas. Os
pretos de Angola formavam a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do
Carmo, fundada na Igreja Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho. Os daomeanos (gêges) reuniamse
sob a devoção de Nosso Senhor Bom Jesus da Necessidade e Redenção dos Homens Pretos, na
Capela do Corpo Santo, na Cidade baixa. Os nagôs, cuja maioria pertencia à nação Kêto, formavam
duas irmandades: uma de mulheres, a de Nossa Senhora da Boa Morte; outra reservada aos homens, a
de Nosso Senhor dos Martírios.
Essa separação por etnias completava o que j´s havia esboçado a instituição dos batuques do século
precedem e permitia aos escravos, libertos ou não, assim reagrupados, praticar juntos novamente, em
locais situados fora das igrejas, o culto de seus deuses africanos.
Varias mulheres enérgicas e voluntariosas, originárias de Kêto, antigas escravas libertas, pertencentes
à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja da Barroquinha, teriam tomado a iniciativa de
criar um terreiro de candomblé chamado Ìyá Omi À Àirá Intil , numa casa situada na Ladeira do
Berquo, hoje Rua Visconde de Itaparica, próxima à Igreja da Barroquinha.
As versões sobre o assunto são numerosas e variam bastante quando relatam as diversas peripécias
que acompanharam essa realização. Os nomes dessas mulheres são eles mesmos controversos. Duas
delas, chamadas Iyalussô Danadana e Iyanassô Akalá, segundo uns, e Iyanassô Oká, segundo outros,
auxiliadas por um certo Babá Assiká, saudado como Essa Assiká no padê do qual falaremos mais
tarde, teriam sedo as fundadoras do terreiro de À Àirá Intilé. Iyalussô Danadana, segundo consta,
regressou à África e lá morreu. Iyanassô teria, pelo seu lado, viajado a Kêto, acompanhada por
Marcelina da Silva. Não se sabe exatamente se esta era sua filha de sangue, ou filha espiritual, isto é
iniciada por ele no culto dos orixás, ou ainda, se tratava de uma prima sua. As opiniões sobre o
assunto são controversas e tornam-se objeto de eruditas discussões, estando, porém todos de acordo
em declarar que seu nome de iniciada era Obatossí.
Marcelina-Obatossí fez-se acompanhar nessa viagem por sua filha Madalena. Após sete anos de
permanência em kêto, o pequeno grupo voltou acrescido de duas crianças que Madalena tivera na
África, e grávida de uma terceira, Claudiana, que será por sua vez mãe de Maria Bibiana do espírito
Santo, Mãe Senhora, Oxum Miua, da qual tive a insigne honra de tornar-se filho espiritual.
Iyanassô e Obatossí trouxeram de Kêto, além dessas filhas e netas, um africano chamado Bangboxé,
que recebeu na Bahia o nome de Rodolfo Martins de Andrade, e, no padê ao qual me referi acima, é
saudado como Essa Obitikô.
O terreiro situado, quando de sua fundação, por trás da Barroquinha mudou-se por diversas vezes e,
após haver passado pelo Calabar na Baixa de São Lázaro, instalou-se sob o nome de Ilê Iyanassô na
Avenida Vasco da Gama, onde ainda hoje se encontra, sendo familiarmente chamado de Casa Branca
do Engenho Velho, e no qual Marcelina Obatossí tornou-se a mãe-de-santo após a morte de Iyanassô.
Verifica-se ligeira divergência na versão dada por Dona Menininha relativa às origens dos terreiros
provenientes da Barroquinha. O nome de Iyalussô danadana não é mencionado. A primeira mãe-desanto
teria sido Iya Akalá (distinta de Iyanassô), que, tendo regressado à África, aí mesmo veio a
falecer. A segunda mãe-de-santo teria sido Iyanassô Oká (e não Akalá).
Não se sabe com precisão a data de todos esses acontecimentos, pois, no início do século XIX, a
religião católica era ainda a única autorizada. As reuniões de protestantes eram toleradas só para os
estrangeiros; o islamismo, que provocara uma série de revoltas de escravos entre 1808 e 1835, era
formalmente proibido e perseguido com extremo rigor; os cultos aos deuses africanos eram ignorados
e passavam por práticas supersticiosas. Tais cultos tinham um caráter clandestino e as pessoas que
neles tomavam parte eram perseguidas pelas autoridades.
Por volta de 1826, a polícia da Bahia havia, no decorrer de buscar efetuadas com o objetivo de
prevenir possível levantes de africanos, escravos ou livres, na cidade ou nas redondezas, recolhido
atabaques, espanta-moscas e outros objetos que pareciam mais adequados ao candomblé do que a uma
sangrenta revolução. Nina Rodrigues refere-se a certo quilombo, existente nas matas de Urubu, em
Pirajé, o qual se mantinha com o auxílio de uma casa de fetiche da vizinha, chamada a Casa do
Candomblé.
Um artigo do Jornal da Bahia, de 3 de maio de 1855, faz alusão a uma reunião na casa Ilê Iyanassô:
foram presos e colocados à disposição da policia Cristóvão Francisco Tavares, africano emancipado,
Maria Salomé, Joana Francisco, Leopoldina Maria da Conceição, Escolástica Maria da Conceição,
crioulo livres; os escravos Rodolfo Araújo Sá Barreto, mulato; Melônio, crioulo, e as africanas Maria
Tereza, Benedita, Silvana... Que estavam no local chamado Engenho Velho, numa reunião que
chamava de candomblé. É curioso encontrar nesse documento o nome, pouco comum, de Escolástica
Maria da Conceição, o mesmo com o qual seriam batizados, trinta e cinco anos mais tarde, Dona
menininha, a famosa mãe-de-santo do Gantois, cujos pais, a essa época, sem dúvida, freqüentavam ou
faziam parte do terreiro de Ilê Iyanassô, onde houve essa ação policial.
Com a morte de Marcelina-Obatossí, foi Maria Júlia Figueiredo, m nike, Iyálódé, também chamada
Erelú na sociedade dos g l d , que se tornou a nova mãe-de-santo. Isso provocou sérias discussões
entre os membros mais antigos do terreiro de Ilê Iyanassô, tendo como conseqüência a criação de dois
novos terreiros, originários do primeiro; Júlia Maria da Conceição Nazaré, cujo orixá era Dada
Báayànì Àjàkù, fundou um terreiro chamado Iyá Omi À Iyámase, no Alto do Gantois, cuja mãe-desanto
atual, e quarta a ocupar este lugar, é Dona Escolástica Maria da Conceição Nazaré, Menininha,
a última das famosas mães-de-santo da antiga geração. Segundo Menininha, Júlia Maria da Conceição
Nazaré, fundadora do Terreiro do Gantois, teria sido a irmã-de-santo, e não filha-de-santo, de
Marcelina-Obatossí. Uma personagem importante nos meios do candomblé, chamada Babá Adetá
Okanledê, consagrada a Oxossi e originária de Kêto, teria tido um papel importante quando foi criado
o Terreiro do Gantois, Iyá Omi À Ìyámase.
Eugênia Ana Santos, Aninha Obabii, cujo orixá era Xangô, auxiliada por Joaquim Vieira da Silva,
basanya, um africano vindo do Recife e saudado Essa Oburô, no padê ao qual já fizemos alusão,
fundaram outro terreiro saído do Ilê Iyanassô e chamado Centro Cruz Santa do Axé ter funcionado
provisoriamente no lugar denominado Camarão, no bairro do Rio Vermelho.
Sob o impulso dessa grande mãe-de-santo, o novo terreiro rapidamente se igualou aos outros, e talvez
tenha mesmo ultrapassado em reputação os outros candomblés kêto.
Maria da Purificação Lopes, Tia Badá Olufandei, sucedeu, em 1938, a Aninha e deixou, em 1941, o
encargo do terreiro a Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora Oxum Miua, filha espiritual de
Aninha Obabii.
Pelo jogo complicado das filiações, Senhora era bisneta de Obatossí por laços de sangue e sua neta
pelos laços espirituais da iniciação. Em outros termos, Iyanassô Akalá (ou Oká) foi, na geração
anterior, ao mesmo tempo a bisavó e a trisavó de Senhora. Mas as coisas tornaram-se mais
complicadas ainda quando Senhora recebeu, em 1952, o título honorífico de Iyanassô pelo Aláàfin
Òyó da Nigéria, através de uma carta da qual tivemos a honra de ser opartador. Senhora, abolindo o
tempo passado graças a essa distinção, tornou-se espiritualmente a fundadora dessa família de
terreiros de candomblé da nação Kêto, na Bahia, todos originários da Barroquinha. Confirmou tão
elevada posição, em 1962, quando foi presidir, seguida de seus ogãs, o Axexê, ou cerimônia
mortuária, da saudade e mais que centenária mãe-de-santo do Ilê Iyanassô da Casa Branca do
Engenho Velho, Maximiana Maria da Conceição, Tia Massi Oinfunké.
Essa dignidade recebida da África por Senhora provocou, diga-se de passagem, comentários e
rumores, os fuxicos que agitam e apaixonam as pessoas que pertencem a esse pequeno mundo cheio
de tradição, onde as questões de etiqueta, de direitos, fundamentadas sobre o valo dos nascimentos
espirituais, de primazias, de gradação nas formas elaboradas de saudações, de prosternações, de
ajoelhamentos são observadas, discutidas e criticadas apaixonadamente; nesse mundo onde o beijamão,
as curvaturas, as deferentes inclinações de cabeça, as mãos ligeiramente balançadas em gestos
abençoadores representam um papel tão minucioso e docilmente praticado como na corte do Rei Sol.
Os terreiros de candomblé são os últimos lugares onde as regras do bom-tom reinam ainda
soberanamente.
Após o desaparecimento da saudosa Mãe Senhora, em 1967, duas novas mães-de-santo lhe sucederam
à frente do Axé Opô Afonjá. A atual, Maria Estella de Azevedo Santos, d ksyòdé, retomando a
tradição de Iyanassô e de Obatossí, realizou uma viagem às fontes, na Nigéria e no ex-Daomé.
Outros terreiros foram criados, originários do Axé Opô Afonjá, formando uma terceira, ou mesmo
uma quarta geração dessa família de candomblés que nasceu na barroquinha. Citemos o Axé Opô
Aganju, de Balbino Daniel de Paula, baraim, que viajou para África e ai participou das festas para
Xangô, com perfeita naturalidade e como se sua família não houvesse deixado aquele país há várias
gerações. Recebeu aí novo nome africano, Gb bagúnlè, o rei desce sobre a terra. Indiquemos também
o terreiro Ilê Òrì ànlá Funfun, instalado em Guarulhos, São Paulo, pelo esforços de Idérito do
Nascimento Corral, filho-de-santo de menininha do Gantois. Este pai-de-santo fez, em campainha de
um dos seus filhos-de-santo, Tasso Gadzanis, de Ogum, várias peregrinações à África, onde recebeu
de Oluf n, rei de If n, o título invejável de Àwòrò Ò àlúfón.
No Estado do Rio de Janeiro instalaram-se números candomblé, originários dos três terreiros kêto da
Bahia. Citemos, entre os mais prestigiosos, o Axé Opô Afonjá em Coelho da Rocha, ligado àquele de
mesmo nome, estabelecido na Bahia pela célebre Aninha; em Miguel Couto, o terreiro de Nossa
Senhora das Candeias, fundado por Nitinha de Oxum, Filha-de-santo de Tia Massi da Casa Branca da
Bahia.
Tudo isso mostra a vitalidade, o crescimento e a multiplicação dos terreiros de candomblé originários
da Barroquinha.
Existem numerosos outros terreiros que seguem o ritual kêto, como o de Ilê Mariolaje, no Matatu,
mais conhecido sob o nome de Alakêto, cuja mãe-de-santo atual, Olga Francisca Regis, yafúnmi, já
várias vezes à África. Citemos, ainda, o terreiro de Ilê Ogunjá, também no matatu, do falecido pai-desanto
Procópio Xavier de Souza, Ògúnj bi.
Ao lado dos terreiros nagô-kêto, há na Bahia os da nação Ijexá. O mais digno dentre eles é o de
Eduardo Ijexá, ou Eduardo Antônio Mangabeira, meio-irmão de Otávio Mangabeira, ex-governador
do Estado da Bahia. Durante a década de 50, ele enviou cartas redigidas em perfeito iorubá a seu
distante parente, o rei de Ijexá, que as recebeu de nossa mãos bastante emocionado.
Limitamos o tema desta obra aos orixás iorubás; portanto não falaremos dos terreiros cujas origens
estão situadas em outras regiões da África. Assinalamos, entretanto, que o ritual nagô parece ter tido
uma grande influência sobre os que são realizados nesses outros terreiros. Não se pode excluir
também a possibilidade de que certas influências bantus se tivessem produzido entre os nagôs,
levando em conta que foram trazidos, em grande número, escravos do Congo e de Angola até os fins
do século XVII para todo o Brasil. Relações mais intensas estabeleceram-se, nos séculos seguintes,
entre Bahia e Pernambuco e a Costa dos Escravos. A maioria dos Cativos, desembarcada nessas duas
províncias, foi gêge e nagô (daomeanos e iorubás). Já expusemos em outras obras as razoes
comerciais, fundamentadas na presença do fumo na Bahia e em Pernambuco e a sua ausência nas
outras regiões do Brasil, que determinaram essa afluência de gêge e nagôs, mais exclusivamente
nessas duas províncias, enquanto os congoleses e angolanos continuaram a ser importados em outras
regiões do Brasil.
A palavra candomblé, que designa na Bahia as religiões africanas em geral, é de origem bantu. É
provável que as influencias das religiões vindas de regiões da África situadas nas imediações do
quadro não se limitem apenas ao nome das cerimônias, mas tenham dado aos cultos gêge e nagô, na
Bahia, uma forma que os diferencia, em certos pontos, dessas mesmas manifestações na África.
Relações Bahia-África
Entre os filhos de africanos da primeira geração, que retornaram no século passado para educar-se ou
iniciar um aprendizado em Lagos, voltando depois à Bahia, onde tiveram uma certa influência sobre a
reafricanização dos cultos, temos que citar dois, cujos nomes ficaram gravados nos anais dos
candomblés.
Um deles foi o mui digno Martiniano Eliseu de Bonfim, Ajimúdà, cujo pai, trazido por volta de 1840
como escravo, comprou a de sua mulher. Martiniano nasceu livre, por volta de 1859, e acompanhou
seu pai, aos dezesseis anos, a Lagos, onde trabalhou como aprendiz de marceneiro. Seu pai regressou
à Bahia e só se reencontraram em 1880, quando este passou dez meses em Lagos. Martiniano voltou à
Bahia por volta de 1886, aos vinte e sete anos, sendo recebido de braços aberto nos meios do
candomblé. Sua permanência na África tinha lhe muito prestígio e tornou-se rapidamente um babalaô
muito procurado. Ele possuía o título de Ojeladé entre aqueles que, na Bahia, cultuavam o espírito dos
mortos, os Egúngún. Muito amigo de Aninha, ele a ajudava com seus conselhos e conhecimentos
sobre a história dos iorubás, o que o levou a criar, no Opô Afonjá, em 1935, os títulos honoríficos de
doze Obás de Xangô, reis ou ministros da região de Oyó, concedidos aos amigos e protetores do
terreiro.
O rival mais importante de Martiniano Eliseu do Bonfim era Felisberto Américo Souza, Cujo nome
foi inglesada para sowser e Cognominado Benzinho, ironicamente talvez, pois era freqüentemente
agressivo. Felisberto era também um babalaô, um dos últimos da Bahia. Seu pai, africano, nasceu por
volta de 1833, em Abeokutá. No Brasil, recebeu o nome de Eduardo Américo de Souza Gomes e com
Júlia Maria de Andrade (filha de Rodolfo Martins de Andrade, Bámgbósé Obiikó, trazido de kêto pó
Marcelina-Obatossí) teve Felisberto Benzinho. Eduardo voltou para a África, onde teve numerosa
prole. Felisberto fez o mesmo na Bahia, e suas filhas Irene Souza dos Santos e Caetane Américo
Sowser têm mantido fielmente as tradições trazidas da África. Na geração seguinte, Ary Sowser
tornou-se pai-de-santo de um terreiro na Boca do Rio muito bem organizado e onde, com muita
pompa, Oxaguiã, a quem é consagrado.
Nem todos os africanos libertos e seus descendentes que voltaram à África retornaram ao Brasil,
depois de terem completado seus conhecimentos do ritual do culto dos orixás. Muitos deles
regressaram à África para aí permanecer. Curiosamente, eles chegavam abrasileirados, como fez notar
Gilberto Freyre, desafricanizados, aparentemente cristianizados, vestidos à ocidental, construindo
casas assobradas de estilo brasileiro e formando uma sociedade fechada, sem se misturar facilmente
com os seus antigos compatriotas africanos. Tinham conservado relações comerciais com a Bahia e
faziam freqüentes viagens de uma margem a outra do atlântico, a bordo de numerosos veleiros que
continuavam a navegar entre os dois continentes e que, embora carregassem do Brasil fumo de rolo,
barris de cachaça e carne de sol, não transportava mais escravos dede 1851, ano em que foi
definitivamente abandonado o tráfico negreiro. As mercadorias provenientes da África consistiam em
azeite de dendê, nozes de cola, panos da costa e muitos outros produtos necessários á realização do
culto dos deuses iorubás, pois, se muitas receitas dos pratos africanos, glória da apimentada culinária
da Bahia, chegaram até nós é que foram fielmente conservadas e transmitidas de mães para filhas
pelas baianas vendedora de quitutes nas ruas. Acontecia às vezes que, antes de sair de casa, elas
faziam oferendas de parte das comidas nos altares de seus orixás. Quando as pessoas compravam e
comiam acarajé, participavam, sem saber, de uma comida em comum com Iansã; e se era caruru,
também chamado amalá nos terreiros de candomblé, era com xangô que comungavam. Assim, por
consideração aos gostos dos orixás, nasceram e perpetuaram-se os vários quitutes da Bahia.
O culto dos Orixás
Na África, cada orixá estava ligado originalmente a uma cidade ou a um país inteiro. Tratava-se de
uma série de cultos regionais ou nacionais, Sàngó em Oyó, Yemoja na região de Egbá, Iyewa em
Egbado, Ògùn em Ekiti e Ondô, Ò un em Ijexá e Ijebu, Erinlé em Ilobu, Lógunèd em Ilexá, Otin em
Inixá, Ò àálà- bàtálá em Ifé, subdivididos em Ò àlúf n em Ifan e Ò àgiyan em Ejigbô...
Os Orixás viajaram, em seguida, para outras regiões africana, levadas pelos povos no curso de suas
migrações. Se as pessoas formavam um grupo numeroso, o orixá tomava tal amplitude que englobava
o conjunto da família, e alguns olorixás, sacerdotes do orixá, asseguravam o culto para todo o grupo.
Se alguém se fixa com a sua família restrita à sua mulher e aos seus filhos, o orixá assumia uma
feição mais pessoal. Quando o africano era transportado para o Brasil, o orixá tomava um caráter
individual, ligado à sorte do escravo, agora separado do seu grupo familiar de origem.
A qualidade das relações entre um indivíduo e o seu orixá é, pois, diferente, caso ele se encontre na
África ou no Novo Mundo. Na África, a realização das cerimônias de adoração ao orixá é assegurada
pelos sacerdotes designados para tal. Os outros membros da família ou grupo não têm outros deveres
senão o de contribuir materialmente para os custos do culto, podendo, entretanto, se assim o
desejarem, participar nos cantos, danças e festas animadas que acompanham essas celebrações.
Devem, além disso, respeitar as proibições alimentares e outras, ligadas ao culto, ligadas ao culto de
seu orixá, e, assim agindo, estão perfeitamente em regra com as suas obrigações.
No Brasil, ao contrário, cada um deve assegurar pessoalmente as minuciosas exigências do orixá,
tendo, porém, a possibilidade de encontrar num terreiro de candomblé um meio onde inserir-se, e um
pai ou mãe de santo competente, capaz de guiá-lo e ajuda-lo a cumprir corretamente suas obrigações
em relações ao seu orixá. Se a pessoa for chamada a tornar-se filho de santo, caberá igualmente ao pai
ou mãe de santo a tarefa de levar a bom termo a sua iniciação, e preparar o assento de seu orixá
individual (o vaso que contém os seus ta, as pedras sagradas, receptáculos da força do deus).
Existem, assim, em cada terreiro de candomblé múltiplo orixás pessoais, reunidos em torno do orixá
do terreiro, símbolo do reagrupamento, do que foi disperso pelo tráfico.
Arquétipos
Com o passar do tempo, a definição e a concepção do que é o orixá no Brasil tendem a evoluir. Em se
tratando de africanos escravizados no Novo Mundo ou de seus descentes aí nascidos, sejam eles de
sangue africano ou mulatos, tão claros de pelo quanto possível, não havia e não há problemas, pois o
sangue africano que corre de pele quanto possível, não havia e não há problemas, pois o sangue
africano eu corre em suas veias, não importando a proporção, justifica a dependência ao orixáancestral.
Progressivamente, o candomblé viu aumentar o número de seus adeptos, não somente de mulatos
cada vez mais claros, como também de europeus, e até de asiáticos, absolutamente destituídos de
raízes africanas.
Os transes de possessão dessas pessoas têm geralmente um caráter de perfeita autenticidade, mas
parece difícil incluí-los na definição acima apresentada; a do orixá-ancestral que volta a terra para se
reencarnar, durante um momento, no corpo de um de seus descendentes.
Embora os crentes não africanos não possam reivindicar laços de sangue com os seus orixás, pode
haver, no entanto, entre eles, certas afinidades de temperamento.
Africanos e não africanos têm em comum tendência inatas e um comportamento geral correspondente
àquele de um orixá, como a virilidade devastadora e vigorosa de Xangô, a feminilidade elegante e
coquete de Oxum, a sensualidade desenfreada de Oiá-Iansã, a calma benevolente de Nanã Buruku, a
vivacidade e a independência de Oxossi, o masoquismo e o desejo de expiação de Omolu, etc.
Gisele Cossard observa que se examinarem os iniciados, agrupando-os por orixás, nota-se que eles
possuem, geralmente, traços comuns, tanto no biótipo como em características psicológicas. Os
corpos parecem trazer, mais ou menos profundamente, segundo os indivíduos, a marca das forças
mentais e psicológicas que os anima.
Podemos chamar essas tendências de arquétipos da personalidade escondidas pessoas. Dizemos
escondidas porque, não há nenhuma duvida, certas tendências inatas não podem desenvolver-se
livremente dentro de cada um, no decorrer de sua existência, vivem. A educação recebida e as
experiências vividas, muitas vezes alienantes, são as fontes seguras de sentimentos de frustração e de
complexos, e seus conseqüentes bloqueios e dificuldades.
Se uma pessoa, vítima de problemas não solucionados, é escolhida como filho ou filha de santo pelo
orixá, cujo arquétipo corresponde a essas tendências escondidas, isso será para ela a experiência mais
aliviadora e reconfortante pela qual possa passar. No momento do transe, ela comporta-se,
inconscientemente, como o orixá, seu arquétipo, e é exatamente a isso que aspiram as suas tendências
secretas e reprimidas.
Toda essa experiência permanecendo no domínio do inconsciente, o resultado da intervenção do orixá
pode ser comparado ao dos psicodramas de Moreno, com a diferença, porém, que, ao invés de ser um
processo que tende a liberar um doente de suas angústias, no meio deprimente de uma clínica, o
inexprimível é mais poeticamente exteriorizado numa atmosfera de agradável aprovação de
admiradores fascinados.
Os arquétipos de personalidade das pessoas não são tão rígidos e uniformes como os descritos nos
capítulos seguintes, pois existem nuances provenientes da diversidade de qualidades atribuídas a cada
orixá. Oxum, por exemplo, pode ser guerreira, coquete ou maternal, dependendo do nome que leva.
Como veremos, diz-se que há doze Xangôs, sete Oguns, sete Iemanjás, dezesseis oxalás (na África
eles seriam cento e cinqüenta e quatro), tendo cada um suas características particulares. Eles são,
segundo os casos, jovens ou velhos, amáveis ou ranzinzas, pacíficos ou guerreiros, benevolentes ou
não.
Brasil, além do mais, cada indivíduo possui dois orixás. Um deles é mais aparente, aquele que pode
provocar crises de possessão, o outro é mais discreto e é assentado, fixado, acalmado. Apesar disso,
ele influencia também o comportamento das pessoas. O caráter particular e diferenciado de cada
indivíduo resulta da combinação e do equilíbrio que se estabelecem entre esses elementos da
personalidade.
 
Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo
(Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega)

INICIAÇÃO
Iniciação na África
Na região iorubá, a iniciação de um elégùn (aquele que pode ser “montado” , possuído, pelo orixá) não
apresenta problemas. Geralmente ele foi indicado para desempenhar esse papel por ocasião do seu
nascimento, pela adivinhação, quando seus pais consultaram um babalaô para conhecer o destino do
recém nascido. O futuro elégùn, muito cedo, geralmente aos sete anos de idade, é confiado a um
sacerdote do orixá. Em se tratar de Xangô, irá para a casa de um Mógbá àngó, de um elégùn àngó
ou, ainda, de uma Ìyá àngó para viver na atmosfera do culto do deus.
Em certas regiões nagô , como Saketê ou Ifanhim, ou mesmo em terras estranhas aos iorubás, como
Uidá entre os hweda, há gbé àngó poderosos, sociedades que reúnem todos os adeptos do deus,
onde os futuros elégùn fazem sua iniciação em grupos mais ou menos numerosos.
Tivemos oportunidade de acompanhar as diversas fases dessas cerimônias para grupos de dezoito
elégùn em Ifanhim, onde o gbé não conhece fronteiras (anglo-francesa outrora, nigeriano beninesa
atualmente); seis em Uidá e dois em Saketê; assim como na Bahia, onde é idêntico o ritual
seguido.
De um lado e outro do oceano Atlântico, as cerimônias de consagração dos novos elégùn àngó
duram dezessete dias. Na África, elas começam e terminam num dia dedicado a este orixá, da semana
iorubá de quatro dias. Elas têm início, por razões que ignoramos, no momento o mais próximo
possível do primeiro quarto da lua, para terminarem na época do último quarto.
Algumas vezes, pode haver variações nos detalhes do ritual, mas a seqüência geral das diversas partes
de uma iniciação é a mesma.
Em Saketê, por exemplo, era preciso substituir um elégùn àngó já falecido e, antes de iniciar a
cerimônia, foi necessário consulta a alma do morto para obter seu consentimento e sua concordância
com a escolha de um novo eleito.
Essa consulta foi feita por um pequeno grupo, de aproximadamente vinte pessoas da família, à meia
noite mais ou menos, ao ondô de uma estrada deserta, um pouco fora da cidade. As mulheres pararam
em uma ponte sobre um pequeno rio. Os homens continuaram seu caminho até cerca de cem metros
mais a diante. Um deles, um tal ládélé, derramou no chão água e azeite de dendê, colocou por cima
nozes de cola e galos vivos, amarrados pelos pés. ládélé gritou um nome, alongando cada sílaba ao
máximo, e suplicou:
“Wá gbà aw n rù r ,
Ki fi m wa silè fún wa
Ki òsà á gbé wa“
(“Vem buscar tuas oferendas
Deixa-nos teu filho na terra
Para que o orixá nos proteja” ).
De longe, ouviram-se gritos prolongados: “O o o o o o o o o” . Era Baba Egúngún que respondia.
Todos os presentes, ajoelhados, pediram-lhe para vir ao encontro deles. Perceberam uma sombra
aproximado-se na escuridão. ládélé avançou em sua direção e deu-lhe as nozes de cola e os galos. O
espírito gritou três vezes: Mo gbà a ( “ Eu aceito” ), e acrescentou: E j mba ndélé [“ Venham comigo
para casa (no além)” ]. Os presentes recusaram: E béò! A pò lébìn, m de o wà láàrin wa (“ Não! Há
muita gente depois de nós, há crianças entre nós” ). Baba Egúngún insistiu. ládélé pegou então uma
panela de barro e jogou-a violentamente no chão, onde ela se desfez em pedaços. Todos fugiram para
a cidade, perseguidos por um curto espaço de tempo e sem muita firmeza por Baba Egúngún.
No dia seguinte, começavam a iniciação dois novos elégùn. Um deles ia substituir o sacerdote morto,
cuja alma acabava de ser consultada. O Xangô da família encontraria, assim, outro de seus
descendentes em quem se encarnar durante as cerimônias organizadas em seu louvor.
Entrada na igbó ikú
Os futuros elégùn vão para o local de sua iniciação alguns dias antes do início das cerimônias. Sua
consagração ao orixá pode se realizar em um templo já existente, na cidade ou em uma roça das
redondezas, ou então em um novo local que deverá ser sacralizado. Em todos esses casos, deverá ser
reservado um lugar privado, onde deverá viver os noviços, próximo ao local onde se realizarão as
cerimônias públicas. Esse lugar, às vezes chamado “ convento“ por alguns autores, tem o nome de
igbó ikú, “ a floresta da morte” . Pode ser um simples quarto de uma casa ou um grande recinto
cercado, permanente ou transitório, atrás do pátio da roça, onde os iniciados vão viver durante os
dezessete dias de sua reclusão, protegidos das intempéries por um simples tapume de palha
trançada.
A permanência na igbó ikú simboliza a passagem para o além, entre a antiga existência profana e a
nova, consagrada ao deus. Desde sua entrada nesse lugar, os noviços são obrigados a fazer abluções e
tomar beberagens vegetais, feitas com a infusão de certas folhas, cascas e raízes dedicadas ao orixá,
iguais às que serviram à preparação do odù do orixá, descrito pó Epega, reforçando assim a ligação
entre este e seu futuro elégùn.
Essas beberagens e abluções, que contêm o à , a força do deus, parecem exercer uma ação sobre o
cérebro dos iniciados e contribuir para deixa-los num estado de entorpecimento e de
sugestionabilidade que fará deles criaturas dóceis e aptas à consagração.
Àìsùn
Na noite que precede o começo das cerimônias de realização realiza-se o àìsùn (“ não dormir” ), a
vigília noturna, durante a qual os participantes da festa chegam em pequenos grupos, cumprimentamse
uns aos outros, falam das últimas novidades, sentam-se aqui e ali, descansam e bebem alegremente
vinho de palma, meu, ou de álcool abatido por destilação, tí.
No decorrer das iniciações observadas para Xangô, encontravam-se presentes os Mógbá àngó,
aqueles responsáveis pelo bom andamento do culto e guardiões do axé. Caracterizam-se por não
entrarem em transe como os elégùn. A Ìyá àngó do lugar ou Ìyá gb , a “mãe da comunidade” ,
encontra-se também presente. É ela quem transmite o axé aos novos elégùn.
Uma das iniciações observadas foi realizada num local ainda não consagrado. Foi preciso prepara-lo,
pois, no dia seguinte, seria realizado o batismo de sangue dos noviços.
Cavaram um buraco no chão e vários elementos foram ali despejados: a infusão das plantas, de que já
falamos, o sangue e as cabeças de um galo e de um pombo sacrificados sobre o buraco; foram
acrescentados elementos calmantes: limo da costa, òrí; azeite-de-dendê, epo pupa; o líquido que
escorre da casca esmagada de um caracol, ìgbín; e, ainda, quatro espécies de pós-pretos obtidos pela
calcinação de vários elementos; e, por fim, nozes de cola de duas espécies chamadas obíe orógbó. O
buraco foi tapado, devidamente marcado com alguns búzios e coberto com um esteira. Neste lugar
exatamente, será colocado, no dia seguinte, um pilão, odó, emborcado, que servirá de assento aos
noviços para seu batismo de sangue.
Orì í e
O primeiro dia é chamado orò í e (“ cumprir a tradição” ), termo correspondente ao sundide de origem
fon, significado “ primeira saída dos iniciados” , empregado nos trabalhos precedentes.
Nesse dia, realizam-se duas cerimônias: anl dò e afèjèwè.
Anl dò
Cedo, pela manhã, realiza-se o que se chama anl dò(“ vamos ao riacho” ), quando os noviços, homens
e mulheres, saem da igbó ikú. Eles caminham, um atrás do outro, no estado de entorpecimento do
qual falamos anteriormente. Um grande pano branco, àlà, é mantido sobre suas cabeças; estão todos
vestidos de panos esfarrapados e entram no recinto consagrado a Xangô, onde cada um deles recebe
uma jarra contendo infusão de folhas dedicadas ao orixá. Quando saem dali Ìyá àngó e algumas
iniciadas já antigas colocam sobre a cabeça dos futuros elégùn uma rodilha de fibras, usadas na áfrica
como esponjas vegetais. Em cada uma dessas rodilhas foram presos uma fileira de búzios e um
pintainho de alguns dias, amarrado pelos pés. As jarras são colocadas por cima Ìyá àngó e suas
ajudantes. Elas têm o cuidado de coloca-las três vezes seguidas, antes de deixa-las ali. A fila de
noviços forma-se de novo e dirige-se, acompanhada pelas mulheres encarregadas da iniciação e por
um conjunto formado de atabaques bàtá ou de cabeças agbè. Esse pequeno grupo dirige-se a um
riacho, ou uma lagoa, situado no meio de uma floresta sagrada da vizinhança. Os noviços vão com o
corpo inclinado para frente e a cabeça levantada para manter o equilíbrio da jarra. Caminham
dançando, seguindo o ritmo dos atabaques, e de vez em quando esboçam alguns passos mais firmes,
com os joelhos dobrados. Muitas vezes, um elégùn de Exu precede o cortejo para que nada de
desagradável aconteça.
As iniciadoras e os noviços são os únicos a penetrarem na floresta. Os músicos e as pessoas da escola
param e esperam na proximidade. À beira do rio, ou da lagoa, fora construída uma pequena cabana de
folhas de palmeira. No centro, fora cavado um buraco e coberto com alguns galhos, formando uma
grade. A terra retirada da escavação fora deixada ao lado, em forma de montículo.
Cada noviço deve ficar de pé um após outro, em cima da grade improvisada sobre o buraco, e a jarra é
colocada em cima do montículo. O iniciado é então despido e seus trapos são jogados no fundo do
buraco. Seu corpo é lavado com a água contida na jarra e esfregado com a rotilha os búzios e o
pintainho, que, não resistindo a esse tratamento, não demora a morrer. Tudo isso é depois jogado no
buraco. A operação consiste, ao mesmo tempo, num sacrifício de substituição e de purificação das
faltas que tivessem podido manchar o passado dos noviços. Assim, uma vez purificado, seu corpo é
enxaguado com a água do riacho e vestido com um pano branco. Colocam-lhe na cabeça uma nova
rodilha e a jarra contendo gora água do riacho. Quando o último dos noviços terminar essa obrigação,
tornam a fechar, socando a terra com os pés. O abandono das roupas velhas, substituídas pelos novos
panos brancos, é um símbolo da rejeição do passado e da passagem para uma vida nova dedicada ao
orixá.
Afèjèwè
Durante o tempo em que os noviços foram realizar essa cerimônia de purificação, Mógbá àngó e
seus auxiliares foram ao local consagrado na véspera, prepara-lo para a realização do batismo de
sangue dos neófitos, afèjèwè (“ lavamos com sangue” ). Algumas folhas são colocadas embaixo as
esteira, posta no chão na noite anterior, e um pilão é emborcado em cima. Um muro de panos é
mantido pelos auxiliares ao redor do local consagrado, para proteger dos olhares indiscretos à parte da
cerimônia a ser realizada.
Os noviços são levados, um após outro, para esse recinto. Estão no estado de entorpecimento mental a
que já nos referimos. Cada um deles é amparado e guiado pelas iniciadoras até o pilão emborcado,
onde é sentado e levantado duas vezes para só permanecer na terceira. A seus pés são colocados,
sobre uma bandeira de madeira, um edùn àrá (machadinha de pedra ou pedra de raio), suporte do axé
de Xangô, um facão e um éré (xeré), chocalho feito com uma cabaça alongada.
Os cabelos do iniciado são raspados e recolhidos em uma pano branco colocado em seu colo. São
feitas incisões no alto do seu crânio, onde será colocado, depois, um òsù (oxu), do qual falaremos
mais adiante.
Para cada noviço são sacrificados primeiro os animais: galos, pombos, tartarugas, galinhas-d´angola e
caracóis. O sangue é derramado ao mesmo tempo sobre a cabeça do iniciado e sobre a machadinha de
pedra, estabelecendo a ligação entre o futuro elégùn e Xangô.
Os corpos dos animais decapitados são apresentados ao noviço, que chupa um pouco do sangue; pode
acontecer que ele aperte em seus dentes o pescoço do galo com tal força, que arranque um pedaço e
mastigue, lentamente, por alguns momentos. Marca-se a cabeça do noviço, bem como o peito, as
costas, os ombros, as mãos e os pés com o sangue dos animais sacrificados.
O ponto culminante da cerimônia de batismo de sangue é aquele em que um carneiro é sacrificado.
Antes de imolar o animal, é costume dar-se-lhe para comer algumas folhas verdes de cajazeira. Mas,
antes, as folhas são mostradas três vezes ao carneiro e tocadas levemente na cabeça do noviço. Da
terceira vez, elas lhe são mostradas mais demoradamente e, em geral, o animal começa a devora-las.
Se o carneiro não as comer ele é poupado e deverá ser substituído por outro. Logo que ele começa
mastigar as folhas, a pedra de raio é introduzida à força em sua goela e seu focinho é amarrado
fortemente. O carneiro é, então, degolado e o seu sangue é aparado em uma cabeça e derramada um
parte no ojúb e outra na cabeça do noviço, escorrendo por todo o corpo. Em seguida, com as penas
das aves sacrificadas, cobre-se a cabeça, o rosto e os diversos pontos de seu corpo, que foram
marcados com sangue.
O espetáculo é impressionante e lembra um pouco o que se sabe a respeito dos “Mistérios de Cibele,
onde o iniciado, deitado em uma cova, recebia sobre seu corpo o sangue de um touro ou um
carneiro” .
A cabeça do animal é separada do corpo, acima do noviço prostrado sobre o pilão. Acontece então
que Xangô manifesta sua aceitação aos sacrifícios e à consagração do novo elégùn, apossando-se
dele, “montando” (gùn) nele. O elégùn pega a cabeça do carneiro com as duas mãos, aproxima-a de
seu rosto e aperta, entre os dentes, uma das artérias carótidas, para entregar-se, em seguida, a uma
dança alucinante ao som das palmas e dos cantos dos presentes. A cabeça do carneiro, estreitamente
ligada à do elégùn, balança ao ritmo da dança e parece, às vezes, mais viva que o rosto estupefato do
noviço. Uma espécie de comunhão parece estabelecer-se entre eles, símbolo vivo do sacrifício de
substituição que acaba de ser consumado.
Alguns momentos depois, o noviço senta-se de novo no pilão, descerra os dentes e solta a cabeça do
animal sacrificado. Move-se ainda por uns instantes, fazendo girar o seu tronco e inclinando-o para
frente e para trás. O êxtase atinge seu paroxismo e é logo seguido de um desfalecimento. O iniciado
cai no chão, debatendo-se, e é logo levado para a igbó ikú.
A reação do noviço no batismo de sangue pode-se ser mais calma e sua volta a igbó ikú feita com
mais serenidade. Ele, ou ela, torna-se um m titun, uma “ criancinha” . Ele, ou ela é guiado por suas
iniciadoras que, com solicitude, amparam seus passos ainda hesitantes. O iniciado continuará nesse
estão, m titun, durante os dezessete dias de seu internamento na igbó ikú.
O grupo dos m titun encontra-se reunido dentro desse recinto. Deverão realizar, regularmente, suas
abluções e tomar infusões vegetais. Passarão seus dias deitados em esteiras, cobertos de panos
brancos. Um ò ù (oxu) é preso em sua cabeça, exatamente no lugar onde foram feitas as incisões do
dia do batismo de sangue. Este ò ù é uma pequena bola, do tamanho de um ovo de pombo, feita de
um aglomerado de folhas reservadas de Xangô, embebidas no sangue dos animais sacrificados, às
quais acrescentam-se elementos de uso constantes nas oferendas: ratos (eku) e peixes ( já), que
simbolizam noções complementares como terra – água, masculinidade - feminilidade, esquerda –
direita; pena de galo das Campinas (àlúko); de cuco (àgbe); de papagaio (odíde); de garça (lékeléke),
cujo simbolismo é mais difícil de interpretar. Tudo isso é pilado e comprimido para formar o ò ù, cujo
objetivo e sacralizar a cabeça do iniciado. Este será chamado, a partir daí, adó ù, que significa
“ aquele que usou um ó ù” , prova incontestável de sua iniciação.
Ijéta ou Ijéfun
O terceiro dia da iniciação, ijéta, é o dia de fun, quando o corpo do iniciado é marcado com traços de
giz branco.
Nesse dia, realiza-se a primeira aparição em público dos m titun. Eles vão todos até o riacho, na
floresta sagrada, levada por seus iniciadores. Sua atitude, de completa submissão, revela que eles
passaram a um estado de crianças de tenra idade. Andam guiados, quase que colados atrás dos
iniciadores, enrolados no mesmo pano branco, como criancinhas nas costas da mãe. Voltam para a
igbó ikú, logo saindo novamente com a cabeça e o corpo enfeitados com riscos e pontos brancos
traçados com giz ( fun), sinal de respeito por Obatalá, criador dos seres humanos. Os m titun dão
três voltas pela praça, com passos incertos, e são levados de novo ao local de seu isolamento.
Ijéje
O sétimo dia, ijéje, é o dia do waj , no qual a cabeça dos m titun é pintada de azul-anil (aro), com
acréscimo de desenhos feitos com osùn (ossum), um pó vermelho extraído da casca de uma árvore. O
terceiro e o sétimo dia caem no dia semana iorubá dedicado a ifá.
Ijétadogún
No décimo sétimo dia, ijétadogún, quinto dia dedicado a Xangô desde o começo iniciação, chega
finalmente o momento em que o m titun torna-se um elégùn e passará a usar um novo nome.
Esse dia é marcado por duas cerimônias: a da escolha do novo nome e a da reaprendizagem das
atividades da vida diária.
Procura do odù
De manhã cedinho, cada um dos m titun é levado separadamente ao local consagrado a esse deus.
O iniciado é sentado sobre um pano branco, de costas para o ojú àngó, e entre suas pernas estiradas
coloca-se um dùn àrá, o mesmo que serviu para a sua consagração ao deus no dia de orò í e. Ìyá
àngó pergunta-lhe: “ Procuras o poder do orixá ou dinheiro ?” O candidato responde: “ É o poder do
rixa que eu quero” . Em suas mãos juntas, ele recebe da Ìyá àngó dezesseis búzios, com os quais fará
a adivinhação.
O m titun esfrega os búzios nas mãos, com elas aponta para os quatro pontos cardeais, para o alto e
para o chão, toca-se vezes na testa e joga-se sobre o pano, entre suas pernas. Ìyá àngó examina a
posição dos búzios, contando os abertos e os fechados, e em voz alta anuncia o resultado, provocando
comentários dos espectadores.
Os búzios são lançados duas vezes para determinar o odù, ou o signo, que de agora em diante
governará a vida do iniciado. Um deles obteve duas vezes o número 6, Òbàrà, que designa Xangô, e
foi felicitado por todos os presentes, pois, como veremos mais adiante, esse resultado deu-lhe um
nome prestigioso.
Reaprendizagem das atividades da vida cotidiana
Graças à determinação do seu odù, os iniciados encontram uma identidade, uma personalidade, mas
falta-lhes ainda reaprender os gestos e as atividades da vida cotidiana. Eles são considerados como
tendo esquecido tudo de sua vida anterior, a que precedeu os dezessete dias passados na igbó ikú, a
“ floresta da morte” .
Os dezoito iniciados são divididos em dois grupos: rapazes e moças. Os primeiros, cercados por seus
instrutores, imitam a partida para o campo, com uma enxada no ombro e um cesta na cabeça. Fazem
gestos de cultivar a terra, de semear o milho ou subir no tronco de uma árvore para cortar cachos de
dendê. Aos primeiros golpes de facão dados caroços de dendê e grita com uma falsa admiração: “Ah!
Que belo cacho acaba de tirar!” As moças fingem ir buscar água no riacho com uma cuia ou um pote
na cabeça ou ir apanhar lenha no mato. Os dois grupos voltam ao terreiro ao mesmo tempo e simulam
ir ao mercado, vender e comprar; depois, à volta á casa para acender o fogo, cozinhar, etc.
Todos os gestos da vida reencontrada são executados em uma atmosfera de humor e de alegre
descontração depois do longo período de recolhimento, de resignação e de langor passado na igbó
ikú.
Aproxima-se o fim da iniciação. Colocam-se esteiras no chão, diante do local consagrado a Xangô.
Os novos adó ù estão sentados entre as pernas estiradas de seus iniciadores, postados atrás
deles.
A Ìyá àngó pronuncia um longo discurso, meio sério engraçado, e faz uma série de recomendações.
Associando o gesto à palavra, esbarra o pé em um iniciado sentado à sua frente, puxa-lhe a orelha,
toca-lhe a testa declarando: “ Se alguém te der um pontapé, te puxar as orelhas ou te der pancadas na
testa, por descuido ou acidente, não precisas dizer nada, mas se exagerar e o fizer de propósito, é
preciso que te vingues” .
Em seguida, ela diz: “ Se alguém à noite passasse com uma lâmpada acesa atrás de ti...” .
Essa possibilidade sugerida pela Ìyá àngó teria como conseqüência deixar que o iniciado visse sua
sombra (òjìjì), que abriga seu èmi que é, ao mesmo tempo, seu sopro, sua alma, seu espírito e seu
princípio vital; isso constituiria um ato repreensível, feito com intenções hostis. Uma das iniciadoras
gritou horrorizada quando ouviu evocar um tal sacrilégio e rolou pelo chão, arrastando consigo, por
contágio, todos os outros adó ù e seus iniciadores.
Depois dessa cena de confusão, eles foram levantados e sentados novamente. Todos eles, inclusive os
iniciadores, tinham o ar entorpecido que acompanha os transes de possessão.
Passada essa grande comoção, realizaram-se casamentos simulados. Meninos e meninas foram
escolhidos, entre os assistentes, para desempenhar o papel de marido ou de mulher aos adó ù. As
pernas de cada casal foram cruzadas em sinal de união e novas recomendações foram feitas: “ Uma
mulher pertencente ao culto de xangô pode ter relações com um homem que não segue o mesmo
culto, mas não com um homem que faça parte do gbé àngó” , e a iniciadora enumerou assim uma
série de obrigações e de proibições que decorriam de sua admissão ao culto do deus. Em seguida, ela
ensina aos “ recém-casados” a cuidarem um do outro oferecendo-se mutuamente de comer.
A Ìyá àngó comunicou depois a cada um dos novos elégùn o nome que usaria a partir daquele
momento. O que achara por duas vezes o sinal de Òbàrà recebeu o nome de bàdiméjì, ou seja, “ o rei
torna-se dois, ele é duplo, ele é rei de dia e ele é rei de noite” . Este nome glorioso foi recebido com o
aplauso dos presentes.
A partir daquele momento, pronunciar o antigo nome dos iniciados tornar-se-ia um ato sacrílego, que
consistiria em chamar um vivo pelo nome de um morto e, assim, implicitamente, desejar-lhe a
morte.
Para terminar a descrição das cerimônias de iniciação na África, chamamos a atenção para as
cerimônias de ressurreição dos futuros, sacerdotes do vodun fon Sapata-Ainon, correspondente à
ànpònná- balúayé dos iorubás.
Embora observada em Abomey, em pleno território fon no ex-Daomé, essa cerimônia permanece
ligada ao grupo de pessoas que falam o iorubá, pois os futuros sapatasi usam. Durante todo o período
de iniciação, o nome de ànàgónu (“ os nagôs” ), e a língua por eles falada durante todo o período de sua
reclusão é o iorubá arcaico, ainda falado pelos aná, também chamados ifè, estabelecidos na região de
Atakpamê, no Togo. Essa cerimônia, da qual já publicamos as fotografias em outras obras, marca a
ruptura do noviço com seu passado, através de morte simbólica, e seu nascimento para uma nova vida
consagrada a Sapata.
Uma ou duas semanas durante uma sessão de danças e cantos diante do templo de Sapata, os futuros
sapatasi caíram no chão, com o corpo retesado, como em estado de catalepsia, morto, como se diz,
pelo vodun Sapata. Os corpos foram logo cobertos com panos e levados para o interior do templo. As
cerimônias de ressurreição realizavam-se no próprio local onde os noviços caíram. Um público
numeroso estava reunido e os tocadores de atabaque estavam instalados no centro do terreiro sob uma
árvore frondosa.
Aproximadamente às quatro horas da tarde, o sapatanon, “ o grande sacerdote de Sapata” , e três
dignitários do templo vieram desenhar no chão um grande retângulo, derramando, sucessivamente
cada um deles, rastros: amarelo, de farinha de milho misturada com azeite-de-dendê (v v ); branco,
de farinha de milho; preto, de pó de carvão vegetal; e, por fim, milho e feijão misturados. Uma
esteira de manchas negras, vermelhas e brancas foi trazida e estendida acima dos sacerdotes que
realizavam um sacrifício de substituição, oferecendo galos a terra para que ela concordasse em
devolver a vida àqueles pelos quais se realizava a cerimônia.
Depois de ter sido levantada e colocada sete vezes no chão, a esteira foi estendida no centro do espaço
delimitado pelos traços coloridos. As jarras contendo infusão de folhas foram trazidas. Os
“ cadáveres” também foram trazidos para fora do templo, um a um, enrolados em um pano, de cor
verde e costurado como uma mortalha. O corpo foi deitado sobre a esteira, abundantemente borrifado
com o líquido das jarras, e a mortalha foi enfim descosturada. Uma grande folha foi colocada sobre o
rosto do noviço; o corpo apareceu, deitado do lado esquerdo, com a pele esverdeada pela tintura do
pano desbotado. Alguns vermes mexiam-se sobre o corpo, mas alguns descrentes afirmavam que
eram provenientes de galos mortos que teriam feito companhia ao “ cadáver” em sua mortalha.
Mulheres ajoelhadas massageavam e lavavam o corpo com o líquido contido nas jarras. Sapatonon
afastou-se alguns passos e chamou sete vezes o “morto” pelo seu novo nome. Quando se ouviu o
último apelo, o corpo começou a tremer e a agitar-se, ressuscitando diante da assistência que aplaudia
e manifestava sua alegria pela vinda ao mundo de um novo ànàgónu.
Iniciação no Novo Mundo
No novo mundo, como na África, todas as pessoas que procuram a proteção dos orixás não entram,
obrigatoriamente, em transe de possessão, da mesma maneira que nem todos os católicos ou
protestantes tornam-se padres ou pastores. O transe de possessão é uma forma de comunhão entre o
crente e o seu deus, não sendo dada a todo mundo a faculdade de experimenta-la.
Os que são chamados a tornar-se filhos ou Filhas de santo devem passar por um período denominado
impropriamente “ iniciação” . Dizemos impropriamente, pois não lhes são revelados segredos. Fazemlhes
reencontrar um certo comportamento, aquele atribuído a seu deus. A iniciação não se faz no
plano do conhecimento intelectual, consciente e aprendido, mas em nível mais escondido, que vem da
hereditariedade adormecida, do inconsciente, do informulado.
Todos os seres humanos possuem, em potencial, numerosas tendências e faculdades que ficam em
estado de vigília. As experiências vividas por um indivíduo, o exemplo dos mais velhos, os princípios
inculcados pela educação, a censura do meio social, fazem com que apenas algumas dessas tendências
e faculdades possam expandir-se, resultando daí a criação de uma personalidade aparente, diferente
daquela que ele poderia ter tido, se o acaso o tivesse colocado num meio onde os valores morais e os
princípios admitidos tivessem sido diferentes.
A iniciação consiste em suscitar, ou melhor, em ressuscitar no noviço, em certas circunstâncias,
aspectos dessa personalidade escondida; aqueles correspondentes à personalidade do ancestral
divinizado, presente nele em estado latente (mesmo sendo só em razão dos genes herdados), inibidos
e alienados pelas circunstâncias da existência levada por ele até essa data. A menos que se trate de um
arquétipo de comportamento, reprimido até essa data. A menos que se trate de um arquétipo de
comportamento, reprimido até então, que possa se exprimir num transe de libertação.
Durante o período de iniciação é mergulhado num estado de entorpecimento e de dócil
sugestibilidade, causado, em parte, por abluções e beberagens de infusões preparadas com certas
folhas. Sua memória parece momentaneamente lavada das lembranças de sua vida anterior. Nesse
estado de vacuidade e de disponibilidade, a identidade e o comportamento do orixá podem se instalar
livremente, sem obstáculos, e tornar-se-lhe familiar.
Mais tarde, como veremos um pouco adiante, depois de realizada a iniciação, a pessoa reencontrará a
sua antiga personalidade e esquecerá, no estado normal, tudo o que se passou durante o período de
iniciação, continuando, porém, sensibilizada no seu inconsciente aos ritmos dos atabaques
particulares a seu orixá. Estes agirão como os estímulos de um reflexo condicionados tenderão a fazela
cair em transe, sucumbindo ao apelo de seu deus. Em outros termos, tais apelos incitam-na a
exteriorizar um arquétipo de comportamento conforme as suas aspirações reprimidas.
No primeiro estágio de suas relações com a seita, o futuro iniciado é chamado de abian. É necessário
que passe ainda pela prova de ter recebido o apelo de um orixá e de ter tido o afã de cair em transe
(“ bolar” é o termo).

 
Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo
(Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega)
CERIMÔNIAS
Cerimônias da África
As cerimônias celebradas para os orixás são acompanhadas de oferendas e sacrifícios. Geralmente, o
orixá manifesta sua aceitação encarnando-se em um de seus elégùn.
Veremos nos capítulos seguintes que as entradas em transe durante as cerimônias tomam
características diferentes de acordo com o orixá festejado. Para Xangô, ela se realiza em épocas
afastadas uma das outras e ele só se manifesta num dos seus muitos elégùn presentes, estando, porém
todos suscetíveis de serem possuídos pelo deus. Esse transe, uma vez iniciado, é de longa
duração(cinco, nove ou dezessete dias) e manifesta-se geralmente no momento do sacrifício de um
carneiro.
O transe de Ogum, Observados na região de Holi, realiza-se praticamente a cada quatro dia, isto é, a
cada semana de ioruba, no dia que lhe é consagrado. O deus se manifesta em seu elégùn, sempre o
mesmo, e durante um curto espaço de tempo, de vinte minutos à uma hora. O transe é provocado
pelos ritmos dos tambores, após as oferendas e sacrifícios.
Nos capítulos seguintes serão dadas a s descrições dessas cerimônias.
Em outras obras, relatamos uma festa para Ògún Edeyi, em Ilodô, na região de Holi, Houve transe de
muitos orixás, embora as oferendas tenham sido feitas para um deles. Todos esse deuses possuíam
seus elégùn respectivos só ao ouvirem as chamadas ritmadas dos tambores, própria para cada um
deles.
Naquele dia, viu-se ali uma série de elégùn fazer evoluções diante do templo de Ògún Edeyi, trazendo
objetos simbólicos de seus deuses: Ògún, deus dos ferreiros e dos guerreiros, trazia dois sinos de ferro
e um facão, àngó, o trovão, brandia seu machado de dois gumes; e sua esposa, ya, divindade das
tempestades, agitava um leque de couro; d , deus dos caçadores, trazia um facão e bastões de caça;
Odùa-Òrí àálá, todo de branco, apoiava-se em um cajado de estanho, metal que lhe é consagrado. Os
elégùn faziam evoluções, dançavam, dialogavam e cada um deles comportavam-se de maneira
diferente, de acordo com as características de seu orixá.
Eles se mantinham em atividade ao som dos ritmos dos tambores, exatamente como ocorre nas
cerimônias para os mesmos orixás no Brasil ou em Cuba.
Cerimônias no novo Mundo
Terreiros de candomblé no Brasil
Na Bahia, no início do século, os terreiros dedicados ao culto dos orixás eram freqüentemente
instalados longe do centro da cidade. Com o crescimento da população e a extensão tomada pelos
novos bairros, eles progressivamente encontravam-se incluídos na zona urbana.
Esses terreiros são geralmente compostos de uma construção, denominado barracão, com grande sala
para as danças e cerimoniais públicas, de uma série de casas, onde são instalados os ¨pejís¨,
consagrados aos diversos orixás, e de casas destinadas à residência das pessoas que fazem parte do
candomblé.
A responsabilidade do culto repousa sobre o pai ou a mãe de santo, correspondentes aos nomes de
origem ioruba, babalorixá ou ialorixá. São chamados também de ¨zelador¨ ou ¨zeladora¨, termos
equivalentes aos de ¨babalaxé¨ou ¨ialaxé¨, pai ou mãe encarregados de cuidar do ¨axé¨, do poder do
orixá.
Os pais ou as mães de santo são assistidos por pais ou mães pequenos, ¨babá¨ou ¨ia kekerê¨, e por toda
uma série de ajudantes, com papeis e atividades diversos e definidos. Assinalamos a ¨dagan¨, que,
antes das cerimônias publicas, encarrega-se, com a ajuda de ¨iamorô¨, do ¨padê¨ou ¨despacho de Exú¨,
do qual falaremos mais adiante; a ¨iatebexê¨, que assiste o pai ou a mãe de santo na direção da
seqüência dos cânticos dos orixás, no decorrer das cerimônias públicas; a ¨iabassê¨, que supervisiona
a preparação das comidas destinadas aos deuses e aos seres humanos; as ¨ekedis¨, que são
encarregadas de cuidar dos ¨iaos¨logo que estes entran em transe; o ¨sarepebê¨, que leva as mensagens
para a sociedade do terreiro. Encontramos anda o ¨alabê¨, chefe dos tocadores de atabaques.
Certos dignitários chamados “ ogãs” não têm funções religiosas especiais, mas ajudam materialmente
o terreiro e contribuem para protege-lo. Formam uma sociedade civil de ajuda mútua, colocada sob a
invocação de um santo católico. Alguns “ ogãs” levam o título prestigioso de obá, no Terreiro Axé
Opô Afonjá, e o título de “mangbá” , no Axé Opô Aganjú, como lembrança de acontecimentos que, na
África, deram nascimento ao culto de Xangô.
Existem enfim as “ iaôs” , “mulheres” dos orixás, que são os filhos e as filhas de santo.
Nos dias de cerimônia pública, chamada de xirê dos Orixás” – a festa, a distração dos orixás - , o
barracão é decorado com guirlandas de papel, nas cores do deus festejado, o chão é cuidadosamente
varrido, salpicado de perfumadas folhas de pitanga, e grandes palmas atadas com fitas decoram as
paredes.
O pai ou a mãe-de-santo, cercados por seus ajudantes, fica sentado próximo dos atabaques, que são
colocados sobre um pequeno estrado enquadrado por palmas trançadas. Os ogãs são instalados em
cadeira ornamentadas e marcadas com seus nomes, onde só eles tem o direito de se sentarem; os
visitantes importantes sentam em bancos e cadeiras e o resto do público fica dividido em dois grupos,
homens de um lado e mulheres do outro, todos separados da parte central do barracão, onde dançam
os filhos e filhas-de-santo. Antigamente, o piso do barracão devia ser de terra batida, e os iaôs
dançavam descalços a fim de que o contato com a terra e o mundo do além, onde residem os orixás,
fosse mais direto. Por razões de prestígio, o piso do barracão é atualmente de cimento e, algumas
vezes, recoberto com assoalho de madeira.
No início da festa, três atabaques de tamanhos diferentes, denominados run, rumpi e lê,
acompanhados por um sino de percussão, o agogô, tocam apelos ritmados às diversas divindades.
Esses atabaques apresentam uma forma cônica e são feitos com uma única pele, fixada e esticada por
um sistema de cravelhos para os nagôs e os gêges, e por cunhas de madeira para os tambores ngomas,
de origem congolesa e angolana.
Tais instrumentos foram batizados e, de vez em quando, é preciso manter sua força (o axé), por meio
de oferendas e sacrifícios. Os atabaques desempenham um duplo papel, essencial nas cerimônias: o de
chamar os orixás no início do ritual, e quando os transes de possessão se realizarem, o de transmitir as
mensagens dos deuses. Somente o “ alabê” e seus auxiliares, que tiveram uma iniciação, tem o direito
de tocá-los. Nos dias de festa, os atabaques são envolvidos por largas tiras de pano, nas cores do orixá
invocado. Durante as cerimônias, eles saúdam, com um ritmo especial, a chegada dos membros mais
importantes da seita e estes vêm curvar-se e tocar respeitosamente o chão, em frente da orquestra,
antes mesmo de saldar o pai ou mãe-de-santo do terreiro.
No caso de um desses atabaques ser derrubado ou cair no chão durante uma cerimônia, esta é
interrompida por alguns instantes, em sinal de contrição.
O uso da bata, utilizando no culto de Xangô na África, perdeu-se no Brasil, mas foi mantido Cuba. Os
ritmos bata são ainda conhecidos por este nome na Bahia. Acontece o mesmo com o ritmo
denominado “ ibi” , dedicado a Oxalá, que na África é batido sobre tambores conhecidos como ìgbìn.
Outros ritmos, como, por exemplo, o “ ijexá” , são tocados em certos terreiros sobre os ìlù, pequenos
tambores cilíndricos com duas peles ligadas uma à outra, durante os cultos de Oxum, Ogum, Oxalá e
Logunedé.
Durante os toques de chamada, feitos no início da cerimônia, os atabaques são batidos sem o
acompanhamento de danças e cantos, o que contribui para realçar, graças a essa ausência de
elementos melódicos, a pureza de ritmo associada a cada orixá. Em lugar de ritmos, podemos chamálos
“ ideofones ou locuções musicais” , segundo a definição de Fernando Ortiz.
O elemento melódico das músicas africanas destaca-se, no decorrer das cerimônias privadas, no
momento dos sacrifícios, oferendas e louvores dirigidos às divindades diante dos “ péjis” . São cantos
sem acompanhamento de tambores, ficando o ritmo ligeiramente acompanhado por palmas. A
melodia é rigorosamente submetida as acentuações tonais da linguagem ioruba.
Os dois elementos, o ritmo e melodia, encontram-se associados no decorrer do “ xirê” , quando os sons
dos atabaques são acompanhados por cantos.
Antes de começar o “ xirê” dos orixás no barracão, faz-se sempre o “ padê” , palavra que significa
“ encontro” em ioruba; um encontro, principalmente com Exu, o mensageiro dos ouros deuses, para
acalma-lo e dele obter a promessa de não perturbar a boa ordem da cerimônia que se aproxima.
Nos terreiros de origem kêtu, o “ padê” se apresenta de duas maneiras: pode consistir em alguns
cânticos em honra a Exu e em oferendas de farofa amarela, de cachaça e azeite-de-dendê, depositados
fora do barracão ao ter início o “ xirê” .
O “ padê” pode, também, tomar uma forma mais elaborada quando houver um sacrifício de um animal
de quatro patas – carneiro, cabra, bode, tartaruga – acompanhado de animais de duas patas – galo e
pombos -, bem cedo ao amanhecer. O “ padê” , nesses casos, faz-se a tarde, algumas horas antes do
“ xirê” . Trata-se, então, de uma cerimônia completa em si mesma e que escapa aos limites dessa obra.
Não se tratam mais de orixás, salvo no que se refere a Exu. Faremos uma breve descrição dessa
manifestação, pois ela pertence ao domínio da evocação de defuntos ancestrais e das bruxas e não do
culto aos deuses africanos propriamente ditos.
Esta “ padê” é em princípio, acessível apenas aos membros do terreiro.
As oferendas ficam reunidas no centro do barracão: alguns recipientes contendo farofa amarela,
cachaça, azeite-de-dendê e acaçá. A “ dagan” ajoelha-se e arruma as oferendas, de acordo com os
cânticos, em pequenas porções dentro de uma cabaça entregam, entregando-a a “ iamorô” , que dança
em torno dela e leva-a para fora do barracão.
Os “ iaôs” ficam ajoelhados, o corpo inclinado para frente, com a cabeça pousada para frente sobre os
punhos fechados, colocados um por cima do outro. O pai ou a mãe-de-santo entoa os cânticos, que
são repetidos em coro pelo conjunto de filhos e filhas-de-santo.
Exu é saudado como prelúdio a uma série de cantos e louvores dirigidos sucessivamente aos “ essás” ,
fundadores dos primeiros terreiros kêto na Bahia: Essá Assiká, Essá Obitikô, Essá Oburô, que são
dessa maneira, devidamente honrados em companhia de quatro outros: Essá Ajadi, Essá Adiro, Essá
Akessan, Essá Akayodé, sobre os quais não se conhece muito além dos nomes. Iyámi O òròngà
( minha mãe feiticeira ), também conhecida por Ìyá Agba (velha senhora respeitável), é em seguida
saudada para evitar que sua grande suscetibilidade seja ferida e afastar, assim, a ameaça de uma
possível vingança.
Uma vez terminada essa parte do ritual, todos se põem de pé, mãos estendidas em forma de saudação,
enquanto a “ iamorô” e as outra pessoas que tomaram parte ativa no “ padê” dançam por um momento,
para honrar a memória dos portadores de títulos desaparecidos.
Mais tarde, no início da noite, começa o “ xirê” . Os “ iaôs” começam por saudar a orquestra e se
protestar aos pés do pai ou da mãe-de-santo, executando em seguida, ao som dos atabaques danças
para cada um dos orixás. Descrevemos, nos capítulos seguintes, o caráter dessas danças, ora
agressivas, ora graciosas, ora atormentadas.
Para o conjunto dos fies, esses cantos e danças são formas de saudar as divindades. Para os filhos-desanto,
consagrados a um orixá determinado, quando chega a hora de evocar o seu deus, a dança
adquire uma expressão mais profunda, mais pessoal, e os ritmos, pelos quais foram sensibilizados,
tornam-se uma chamada do orixá e podem provocar-lhe um estado de embriaguez sagrada e de
inconsciência que os incitam a se comportarem como o deus, enquanto vivo.
O transe começa por hesitações, passos em falso, tremedeiras e movimentos desordenados dos “ iaôs” .
Imediatamente, ficam descalços, as jóias que usam são retiradas, as calças dos homens são
arregaçadas até o meio da perna. Depois de alguns instantes, eles começam a dançar, possuídos pelos
seus deuses, com expressões faciais e maneiras de andar totalmente modificadas.
Os orixás são recebidos com gritos e louvores e, em seguida, fazem a saudação aos atabaques, ao pai
ou à mãe-de-santo, aos “ ogãs” do terreiro, sendo, finalmente, levados pelas “ ekédis” ao “ pejí” do seu
deus. Os “ iaôs” vestem-se, então, com roupas características de seus orixás e recebem suas armas e
seu objetos simbólicos. Uma vez convenientemente vestidos, todos os orixás encarnados voltam em
grupo ao barracão, onde começam a dançar diante a uma assistência recolhida. Xangô “ pavoneia-se”
majestosamente; Oxum requebra-se; Oxossi corre, perseguindo a caça; Ogum guerreia; Oxalufã,
enfraquecido e curvado pelo peso dos anos, arrasta-se mais do que anda, apoiado no seu “ paxorô” .
Há várias sutilezas sobre essas entradas em transe que se inspiram em detalhes indicados nas lendas
dos deuses. Se a festa é para Xangô, podê-se aguardar a sua volta momentânea à terra, acompanhado
por suas mulheres: Oxum, Oiá-Iansã e Oba; eventualmente, seu irmão mais velho, Dàda-Àjàkà,
participa dessa cerimônia. Mais raramente, aparecem Oxalá ou Nanã Buruku. Se a cerimônia destinase
a Ogum, Oxossi também estará presente, sendo provável o comparecimento de Oiá-Iansã,
freqüentemente em briga, a golpes de sabre, com Ogum. Se a festejada for Oxum, Xangô estará
presente, podendo Oxossi também comparecer, como lembranças de suas aventuras passadas.
Isso tende a confirmar o que Bastide escrevia a respeito do transe de possessão, que “ o transe não é
apenas um simples reflexo condicionado respondendo automaticamente a um estímulo” . O estímulo,
nessa circunstância, seria um determinado ritmo que sensibilizou o “ iaô” no decorrer de sua iniciação.
Existia um controle da comunidade, da qual faziam parte os orixás, que os obrigaria a levar em conta
o caráter cãs relações que existiam entre eles. Isso é válido, quer se trate de laços hereditários ou de
manifestações de arquétipos, que tal modo torna-se rigoroso o conformismo do “ iaô” possuído pelo
comportamento convencional esperado pelo deus modelo.
A diferença entre as cerimônias para os orixás na África e no Novo Mudo decorre, sobretudo, de que,
na primeira, invocasse um só orixá durante uma festa celebrada em um templo reservada para ele,
enquanto no Novo Mundo vários orixás são chamados em um mesmo terreiro durante uma mesma
festa. E ainda na África tal cerimônia é celebrada geralmente pela coletividade familiar e um só
elégùn é normalmente possuído. No Novo Mundo, não existindo essa coletividade familiar, o orixá
tornou-se um caráter individual e acontece que, durante uma mesma festa, vários “ iaôs” são possuídos
pelo mesmo orixá, para satisfação própria e de todos aqueles que cultuam esse orixá.

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